MUSEU DA DANÇA

Lavagem da Cia REC traz questionamentos políticos e reflexões críticas relevantes

Imagem: Lavagem. Foto Matheus José Maria | Terça, 10 de Outubro de 2023 | por PPG Artes da Cena/UNICAMP |

Por Júlia Ferreira

O espetáculo Lavagem, da Cia REC, grupo formado por dançarinos da periferia e das favelas do Rio de Janeiro dirigido por Alice Ripoll, coreógrafa contemporânea, incita a refletir e, talvez, a entender de primeira algo óbvio, já explicitado no nome do espetáculo. Neste sentido, a “Lavagem” acontece e se transforma no decorrer da apresentação, nos levando a criar outras conexões, que se dividem em três núcleos de movimentação.

A primeira parte é direcionada para o ato de lavar, primeiro significado que é correlacionado, fortalecendo o sentido com os objetos escolhidos, as cores utilizadas e a movimentação.

Os bailarinos se colocam inicialmente envoltos por uma lona azul, cor da água e que também nos remete às piscinas. Suas movimentações ao saírem dessa lona são onduladas, como ondas do mar, ou como movimentos realizados dentro de uma piscina. A movimentação dos braços, que levantam e batem a lona no chão, chama a atenção e explora a ocupação do espaço verticalmente. Repetida diversas vezes e se deslocando pelo espaço, ela é realizada por alguns bailarinos, enquanto dois se movimentam separadamente. Essa movimentação de bater o tecido no chão remete a movimentos de lavadeiras. Roupas grandes, como lençóis e toalhas, eram batidas em pedra na beira de rio, fundo de casas ou em bacias grandes. Já os dois bailarinos separados do coletivo, remetem ao ato de pendurar, dentro do contexto apresentado, roupas. A dupla é composta por um homem e uma mulher, no qual a figura da mulher sempre se coloca como se estivesse pendurada em um objeto fixo, demonstrado pelo homem. Ela se coloca em diversas espacialidades a partir do eixo, em cima da cabeça, pendurada lateralmente, ou ocupando os espaços da frente e de trás.

Num momento de silêncio, com a ausência das expressões faciais que são fortes e marcadas no decorrer de todo o espetáculo, os bailarinos realizam uma pausa envoltos na lona azul. Por um período, as movimentações de expansão e contração com a lona formam desenhos no espaço, e a água, que estava na lona, começa a ser impulsionada para o alto, respingando pelo espaço cênico. Com isso, é interessante notar a tensão que isso traz para o público, disposto em duas fileiras de cadeiras e em duas arquibancadas, num quadrado ao redor do espaço cênico, que lida com a dúvida se irá se molhar ou não.

Após a exploração dessas movimentações, inicia-se uma transição para a segunda parte do espetáculo. Ao esticar a lona utilizada, os bailarinos colocam-na no chão e passam a interagir com os objetos presentes na lateral do espaço cênico, desde o início do espetáculo. Baldes laranjas, com panos brancos, são levados para cima e para o centro da lona, e, a partir desse momento, os dançarinos começam a espalhar água com sabão pelo espaço.

Ocorrendo de diversas formas e muitas vezes sistêmicas da sociedade atual, a segregação por classe social, raça, gênero ou sexualidade podem ser interpretadas nas movimentações escolhidas. Compondo coletivamente figuras, um dos bailarinos tenta se encaixar no espaço formado pelos demais corpos. Como o corpo está ensaboado, os dançarinos passam pela imagem e escorregam para o outro lado. Essa movimentação se repete constantemente, deixando todos que estão em cena tentarem diversas vezes, a se encaixar em algo que não é possível acontecer. Esse encaixe retoma socialmente padrões de diversas organizações sociais que, muitas vezes não descaradas, padronizam corpos e pessoas para que consigam determinados alcances. O sabão pode ser entendido como organizações em sistemas que muitas vezes interiorizaram o impacto maior em determinados grupos e que não são mais vistos, naturalizados pela sociedade, e reprimindo fortemente grupos sociais específicos.

No último momento explorado em cena, são dispostos baldes e panos, de maneira intercalada, montando uma estrutura na qual os bailarinos preparam a espuma. O processo é de produção: o movimento do braço gera espuma no balde, depois a coloca no pano pendurado entre os dois baldes (como uma rede de descanso). Inicialmente, a posição dos objetos remete às organizações de prédios, se comunicando com a iluminação, em que parte é feita por um cordão de lâmpadas comuns e a outra parte por refletores cênicos. Com a repetição da movimentação e início de uma ambientação através do som, retomamos, mais uma vez, ao título “‘Lavagem”. Utilizando o segundo significado apresentado pelo buscador mais popular da internet, percebe-se uma organização física de alimentação dos porcos, uma vez que a lavagem é a comida dada para os animais. É promovido novamente o questionamento se seria essa uma aproximação justificável para realizar depois de um percurso cheio de água e sabão, mas se concretiza esse pensamento quando são apresentadas máscaras, feitas dos mesmos panos utilizados por todo o espetáculo, que lembram o focinho de um porco.

O espetáculo apresentado na Bienal Sesc de Dança (nos dias 15 e 16 de setembro de 2023) proporciona ao espectador uma exploração abrangente a partir das metáforas que a palavra “Lavagem” traz, levando-o a questionamentos políticos e reflexões críticas relevantes. Uma linha que conduz a ter impressões que não são demonstradas diretamente, mas que fazem refletir e estabelecer relações com questões latentes em nossa sociedade de forma poética.


* Júlia Ferreira é Doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. Mestre em Artes da Cena pela Unicamp, tendo sido orientada pela Prof.ª Dr.ª Julia Ziviani Vitiello, e sido bolsista Capes. É Bacharel em Dança (2016) e Licenciada em Dança (2017) pela Unicamp. Integra o Grupo Dançaberta dirigido por Julia Ziviani, compondo a equipe de produção artística e executiva e atuando como intérprete-criadora dos espetáculos.

** Esta resenha foi feita dentro da disciplina "Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 13a. Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas. 


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