MUSEU DA DANÇA

Convite à dança-jogo

Imagem: Rafael Petri | Sexta, 20 de Outubro de 2023 | por PPG Artes da Cena/UNICAMP |

Por Michele Carolina

Domingo a tarde e um sol de rachar. A frondosa árvore no Jardim do Galpão no SESC Campinas se apresentava como um oásis propício para se sentar à sombra em uma cadeira e observar a paisagem. As crianças, no entanto, pareciam não se incomodar com o sol e brincavam ruidosamente no tanque de areia.

Misturando-se ao público passante, foram se achegando três dançarinas e um dançarino. De mansinho e silenciosamente, dividiam o espaço sombreado da árvore. Traziam consigo umas bolas coloridas que posteriormente percebia-se serem meias-calças, objetos que se transformariam em diversos outros itens como cachecóis, cintos, tiaras para os cabelos, pulseiras e uma diversidade de outras possibilidades ficcionais. Adereçavam os corpos, propunham ações a partir da materialidade das meias: esticar, puxar, girar, criar grafismos no chão e tudo o mais que a imaginação das dançarinas e do dançarino permitisse.

O silencio aumentava. Até as crianças pareciam fazer menos ruídos. Será que não vai acontecer nada? Quatro dançarines estavam em lugares diferentes em torno da árvore. O olhar do público transitava de uma intérprete à outra até que num dado momento uma delas tira de um objeto cênico similar a um baú colocado próximo à árvore uma teia de meias-calças. Cada uma das quatro pessoas segurava a grande teia em uma extremidade. O olhar, antes flutuante de uma pessoa a outra, convergiu para o mesmo foco de ação, a movimentação da grande teia.

Foto Jota Rafaelli

E novamente o silencio aumentava. O que será que está acontecendo? O que será que vai acontecer? Essas perguntas acompanhavam a dança silenciosa. O quarteto permanecia dançando com a grande teia embaixo da árvore até que uma criança que brincava no tanque de areia disse: “o que é aquilo?”. Hesitou algumas vezes em se aproximar, até que, acompanhada por um amigo, se aproximou. Fizeram uma entrada breve no interior da teia. Logo outra criança também se aproximou. Estavam curiosas com aquela coisa e com o que estava acontecendo ali. As crianças começaram a testar os limites, tocar a teia, falar com as dançarinas, entrar e sair, pular, abaixar, até que, como em um passe de mágica, muitas crianças estavam dentro da teia fabulando o que seria aquele lugar, coisa, jogo.

A sonoridade passou a ser o ruído das crianças e o pensamento “o que será que vai acontecer?” sumiu. Algo estava deveras acontecendo. A dança proposta pelo grupo Lagartixa na Janela era um convite ao jogo e se completava com a participação do público que parecia ser magnetizado para dentro da teia-trama criada com delicadeza e silencio pelas dançarinas e dançarino. A dança se deslocava pelo espaço de um lado para o outro, de cima para baixo, virava de um tudo jogando e materializando a tridimensionalidade. A ativação proporcionada pelas dançarinas e dançarino colocou em cena as crianças dançarinas e suas mais belas danças com suas coreo-infâncias “noção que integra o eixo ético assumido pelo grupo Lagartixa na Janela diante do mover e deslocamentos das infâncias no mundo, a criança performer que transita entre o real e onírico em sua corporalidade e espacialidade” nas palavras da diretora Uxa Xavier. Naquele espaço de jogo o público teve o prazer de ver sendo criado uma composição em tempo real.

Quando as dançarinas recolheram a teia, as crianças permaneceram ainda por algum tempo brincando e dançando com as memórias do objeto relacional em seus corpos. Era possível para o público ver o invisível da arquitetura imaterial nos rastros da ação. Algo havia passado. As crianças foram se dispersando, buscando outras brincadeiras e logo o espaço sombreado estava novamente em silêncio. “Com as coisas: coreo-infâncias para tempos de reencontro” é um bálsamo de delicadeza no convite ao jogo para todas as infâncias.

 

* Michele Carolina é artista, produtora, parecerista e pesquisadora. Doutoranda no Instituto de Artes da Cena na UNICAMP com o projeto de pesquisa intitulado “Corpo bioma: elos cidade floresta para desespecular a vida. Criações cênicas a partir da dança contemporânea”. Graduada em Licenciatura Português e Inglês. Formada atriz pela Escola Livre de Teatro de Santo André (DRT 48.633). Idealizadora, dançarina e coordenadora no Coletivo Ruínas, plataforma artística independente de investigação, pesquisa e criação transdisciplinar, que desenvolve trabalhos cênicos, instalações, intervenções urbanas e performances em intersecção com audiovisual expandido, música, dança, teatro e tecnologias.

** Esta resenha foi feita dentro da disciplina "Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 13a. Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas. 


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