MUSEU DA DANÇA

Estudo N1S23: um elogio a gravidade

Segunda, 01 de Abril de 2024 | por Nailanita Prette |

“O corpo se move no espaço e no tempo. Estamos falando de dança, afinal.” (Steve Paxton, 2022).

Em 21 de fevereiro de 2024 um dos maiores nomes da arte foi dançar em outros palcos, em outras gravidades, o coreógrafo americano Steve Paxton. Um dos maiores nomes da dança contemporânea, que em vida nos presenteou com coreografias e estudos magistrais sobre a dança. A última obra do coreógrafo que tive contato foi o livro “Gravidade” de 2022. Ao receber a notícia de sua partida me propus a reler, livro poético que ao mesmo tempo nos revela muito sobre a teoria da dança. E como são os encontros gravitacionais, na data de 8 de março apreciei a obra “Estudos N1S23” do Grupo Musicanoar, dançado pelas artistas Helena Bastos e Rebeca Tadiello, com direção geral de Helena Bastos; dramaturgia de Helena Bastos e Rebeca Tadiello; música, composição e performer de Tomás Bastos; com provocação de Raul Rachou, em apresentação única no Centro de Referência da Dança da cidade de São Paulo (CRD), e aponto, uma obra que veio em hora oportuna, além de ser dançada por duas mulheres no Dia Internacional da Mulher, a gravidade que Paxton nos comunica estava analisada e elogiada nesta obra coreográfica.

A gravidade é inerente a nós, sabemos disso, cada planeta e corpo se vale de sua força gravitacional. A questão norteadora de “Estudo N1S23” de acordo com o release, “Como qualificar moveres no corpo?” e ao apreciar a obra podemos nos atentar a apresentação de um estudo minucioso acerca dos modos de mover e formas de dançar, o que interessa em cena é o movimento, digamos em sua forma mais pura no sentido de deixar que o corpo qualifique os seus moveres. Duas mulheres que se contaminam através dos movimentos, ora Rebeca Tadiello inicia as movimentações e em outro momentos Helena Bastos. Mesmo sendo movimentos correlacionais, cada uma apresenta a sua gravidade. Ao palco duas mulheres com qualidades de movimento que ao mesmo tempo que se contrapõem se complementam. Em Helena Bastos temos a fluidez, com movimentos que se assemelham a água em uma bacia que ao tocar a parte sólida compõe voltas circulares e retorna ao seu eixo. Em Rebeca Tadiello temos o controle, o movimento é como uma linha, quando puxada se tenciona, mas presentifica no espaço as ondas das movimentações, como um violão quando tocado. As duas dançam juntas mesmo nos momentos solos e se unem por desenhos materializados em papéis.

Confesso que o título me despertou curiosidade, o que pode ser essa sigla? De onde vem esses números? Ao relacionar com a gravidade, tema esse que remete aos estudos astrológicos, N1S23 poderia muito bem ser o nome de um astro, pois a gravidade desenhada naquele tempo e espaço dançado foram únicos, cheio de particularidades. O genial é que a explicação do nome não é mencionada na obra, colocando a pessoa apreciadora a pensar, prerrogativa de extrema importância na arte contemporânea: a produção de pensamento. Em cena a dança com a sua responsabilidade conceitual.

Para escrever sobre o “Estudo N1S23”, mencionarei Steve Paxton através de seu livro “Gravidade”, pois as duas obras se relacionam muito bem entre si. De um lado o escrito teórico de um dos maiores coreógrafos e de outro uma dança responsável conceitualmente e artísticamente, que apresentou em cena aquilo que se propôs: um estudo da qualificação dos moveres. Por sua vez, S. Paxton (2022, p. 7) nos coloca que a partir da gravidade estabelecemos negociações que serão feitas e refeitas durante toda a nossa vida, logo, como qualificar essas negociações em momentos dançados? “Dançarinos devem hackear seus programas de movimentos básicos para se adaptarem a movimentos novos.” (Paxton, 2022, p. 25). Em “Estudo N1S23”, houve esse hackeamento em forma de jogo através da relação da escuta e da fala materializados em movimentos. Uma hackeou a outra, em momentos Helena Bastos iniciava um modo de mover, Rebeca Tadiello o captava e quando esse movimento se transformava em seu corpo H. Bastos o reconfigurava e assim sucessivamente os corpos estudavam essas movimentações de forma poética e de um sutilidade ácida, pois para quem apreciava era possível se atentar a simetria das movimentações, as formas bem delimitadas, mas com uma pitada de novas descobertas e de uma estranheza belamente confortável. A partir  desses jogos nos são revelados algo que já nascemos: nosso corpo e nossa gravidade, a simplicidade e complexidade de estudar, analisar os movimentos a partir dos seus próprios moveres. 

A gravidade é aquilo que atrai (Paxton, 2022), podemos observar na relação com a música, tocada ao vivo pelo músico Tomás Bastos, corpo e os acordes conversam entre si, existia uma força gravitacional entre a música e as composições coreográficas.

Uma parte singular da obra foi a materialização repercutida em desenhos, que provocou mais uma reflexão: pode a dança se perpetuar no tempo e no espaço a partir de desenhos? A dança não se iguala às outras artes, pois cada corpo que se coloca no momento presente, carregando a sua história, sua gravidade e sua e finitude construído naquele momento, em dança cada acontecimento é um fenômeno único e inigualável, fato que nos provoca a partir dos desenhos feitos por corpos em estado de moveres que imprimiram no papel a fluidez e o estudo de dois corpos materializando no mesmo espaço a sua gravidade. 

Referência

PAXTON, Steve. Gravidade. Tradução: Rodrigo Vasconcelos. São Paulo: n-1 edições; Acampamento, 2022.

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Nailanita Prette

Mestre em Artes da Cena



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