MUSEU DA DANÇA

Arquiteturas do corpo-rua

Imagem: Matheus José Maria | Sexta, 20 de Outubro de 2023 | por PPG Artes da Cena/UNICAMP |

Por Michele Carolina

A experiência proporcionada por “Treta, uma invasão performática” começa na chegada à Sala dos Toninhos na Estação Cultura em Campinas, local escolhido pela Bienal SESC para a apresentação. Para o público pedestre que não conhece o lugar, chegar caminhando e realizar o trajeto do portão de entrada até a sala dos Toninhos parece antecipar a ação. Será que tem algum lugar à frente? Será que é por aqui mesmo? Que lugar é esse? Cruzar um estacionamento com chão coberto por pedregulhos ao lado de um trilho de trem pouco iluminado e sem placas de indicação à noite ambienta para a performance.

A Sala dos Toninhos parece ser um galpão abandonado, arquitetura comum próxima a estações de trem. Objetos antigos, pó, pé direito alto, altas janelas, todo o ambiente é carregado de informações. O público entra e uma grande porta de madeira se fecha. A iluminação é escassa, não há cadeiras, o público acompanha de pé. Em uma das extremidades do grande galpão retangular encontra-se o público apinhado, como se uma força mantivesse os corpos próximos.

Sonoridade grave, iluminação de coloração âmbar protegida por caixas de papelão e um dançarino com o rosto coberto por uma camiseta passa pelo público. É a movimentação dos dançarinos que coreografa os deslocamentos do público ao longo de toda a performance. Corridas, gestos rápidos, uma fuga, talvez? Toda gestualidade é carregada de imagens e invocava situações de rua. A rua se manifesta ali dentro daquele galpão perante os olhos do público. A dança, o figurino, os objetos relacionais indicam ser corpos de homens periféricos que vivem a rua.

Foto Matheus José Maria

Os seis dançarinos-intérpretes, apesar da velocidade e rapidez de seus gestos, passam próximos ao público com precisão e gentileza. A proximidade permite ao público sentir a pulsação dos corpos dançantes, a movimentação das veias, o suor e a atenção na ação coletiva. O grupo Original Bomber Crew do Piauí proporciona para o público uma experiencia simbiótica de múltiplas confluências: a aridez da rua, as organizações que os corpos viventes em ambiente árido engendram para seguir coletivamente, a coexistência da gentileza e da urgência presente no gestual dos corpos em dança, a intimidade com a arquitetura urbana, os próprios corpos se transmutando em arquitetura relacional uns para os outros, e diversos outros aspectos percebidos por cada pessoa que presencia a experiência.

A composição sonora feita por música eletrônica, mixa camadas melódicas com sons graves, ruídos, sons da cidade, sirene, sons que remetem cultos religiosos e tensionam a cena em diálogo com os diferentes momentos da performance. A presença de latas de tinta spray, que são usadas para pixar, tanto como objeto pirofágico quanto sonoro e o deslocamento com skate, que também atua como elemento de composição sonora, colocam a estética da rua em cena poeticamente.

Os intérpretes-dançarinos, que no início do trabalho desenvolvem ações solitárias, criam trajetórias de aproximação até que uma força cinética os coloca muito próximos. Corpos colados, suados, se escalam, rolam no chão áspero e coberto de pó, criam suportes uns para os outros, formam uma massa metamórfica íntegra movente pelo espaço, trazendo múltiplas imagens, ficções, sensações que se ampliam a cada movimento conjunto. O afastamento dos corpos, a pausa, o olhar para o público e o convite a sair do galpão ao abrir um grande portão de ferro, transportando o público para fora, em contato com a brisa fresca para o encerramento da invasão performática foi emocionante. Valeu demais!

 

* Michele Carolina é artista, produtora, parecerista e pesquisadora. Doutoranda no Instituto de Artes da Cena na UNICAMP com o projeto de pesquisa intitulado “Corpo bioma: elos cidade floresta para desespecular a vida. Criações cênicas a partir da dança contemporânea”. Graduada em Licenciatura Português e Inglês. Formada atriz pela Escola Livre de Teatro de Santo André (DRT 48.633). Idealizadora, dançarina e coordenadora no Coletivo Ruínas, plataforma artística independente de investigação, pesquisa e criação transdisciplinar, que desenvolve trabalhos cênicos, instalações, intervenções urbanas e performances em intersecção com audiovisual expandido, música, dança, teatro e tecnologias.

** Esta resenha foi feita dentro da disciplina "Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 13a. Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas. 


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PPG Artes da Cena/UNICAMP

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