MUSEU DA DANÇA

Nunca mais Abismos na Bienal SESC de Dança. O que pretendeu a instalação, idealizada por Edu O.?

Imagem: Performance Edu O. Foto Renata Máximo Guidetti | Terça, 10 de Outubro de 2023 | por PPG Artes da Cena/UNICAMP |

Por Renata Máximo Guidetti

Em Nunca mais Abismos, uma das instalações da Bienal SESC de Dança, uma pergunta se impõe. O que pretendeu a instalação, idealizada por Edu O.?

A instalação teve o intuito de permitir aos participantes uma experiência de relaxed performance, a qual pode ser compreendida como um ambiente acolhedor e com regras flexíveis do espaço cênico. A obra, partiu da pesquisa do artista sobre a bipedia compulsória presente na dança, a qual exclui e desumaniza corpos que não se encaixam aos padrões normativos. Nela, o espaço foi transformado à medida que os intérpretes e os participantes construíram uma teia de nós, escritas, fotografias e memórias ao longo de três momentos que se cruzaram: “Nós”, “Emergir” e “Silêncio”.

A instalação habitou o espaço de uma sala de paredes e teto preto. O espaço encontrava-se equilibrado por “ilhas”. Algumas dessas “ilhas” foram compostas por cadeiras e puffs e acolhiam os participantes, outras continham um significado para a instalação e para as performances. Por exemplo, logo na entrada do lado direito, e a frente, duas fotos impressas em lona, que mediam por volta de dois metros de altura por dois metros de largura, chamavam a atenção. As fotografias traziam sobrepostos umas às outras, a partir da técnica da colagem, partes dos corpos dos performers, como um olho, pernas, braços e cabeças. Ao passar pelo primeiro banner, encontrava-se fixado ao teto, um pedaço de papel que encostava ao chão, a Receita Bípede. Como em uma receita, foram descritas, uma a uma, as frases e palavras capacitistas experienciadas pelos artistas durante a Bienal, as quais denotavam os abismos que ainda persistem em existir na vida da pessoa com deficiência, dentre elas, “nossa comida é para o coletivo”; “não fazemos pra quem tem muitas restrições”; “você leu o contrato?”; “o final da fila é ali”; “estamos aprendendo”; “calma”; “pelo menos você está aqui”.

A sala estava iluminada com alguns pequenos refletores colocados estrategicamente nessas ilhas. Do outro lado do banner que se encontrava à direita da porta de entrada, por exemplo, encontravam-se outras ilhas para acolher os participantes e outras que serviram como uma moldura para as performances como, uma pequena bancada com um espelho colado a parede. Ao seu lado, ocupando o canto de trás, balões japoneses de papel de diferentes tamanhos e cores pendurados por barbantes. Quase ao centro deste outro lado, encontrava-se um emaranhado de cadeiras sobrepostas, umas com as pernas para cima e outras com as pernas para baixo envoltas em barbante e, a frente, a Árvore da Bipedia, envolta por folhas de papel no tamanho A4, as quais continham a frase impressa, Vocês Bípedes Me Cansam, em diferentes idiomas. A instalação contou com audiodescrição e tradução em libras realizadas pelos próprios artistas.

Árvore da bipedia. Foto Renata Máximo Guidetti.

A instalação apresentou uma atmosfera apocalíptica, como a de um abismo, com pouca luz, objetos amontoados, lançados, descartados, esquecidos e que, portanto, questionavam a ambivalência entre o nome da instalação, nunca mais abismos e, as histórias de opressão do elenco. Com o intuito de aproximar as realidades entre participante e performer, todos são convidados a escrever uma nova história. O espaço permitiu a aproximação com o elenco, e a reconstrução dessas histórias.

Durante o primeiro momento, o “Nós”, uma rede de apoio e de afetos foi gerada a partir do ato de tecer em coletivo, performers e participantes atuaram conjuntamente, ao preencher o espaço com a frase nunca mais abismo, falada, escrita e fixada nas paredes e objetos. Somente quando nunca mais abismos ocupou todos os espaços possíveis, a partir dos cartazes fixados nas paredes e objetos, o elenco que até este momento estava separado, agrupa-se, e ao som de um canto para Exu, interpretado por Thiago Cohen, brindam e bebem o feito.

No segundo momento, “Emergir”, cada artista ao performar, revelou suas individualidades e estratégias para fugir dos abismos impostos por uma sociedade que considera a pessoa com deficiência incapaz de gerir a sua própria vida. Ariadne Antico, em sua ilha, desconstruiu o seu personagem, uma palhaça, retira a maquiagem e penteia seus cabelos. Jania Santos, percorreu e explorou com movimentos um caminho feito com um rolo de papel branco.

Colagem e performance Jania Santos. Foto Renata Máximo Guidetti.

Estela Lapponi, colocou-se entre caixas de papelão, e com um microfone de distorção de voz, dizia a frase, “Na Minha Casa Eu Não Faço Curvas”, ao mesmo tempo que chutava e deslocava-se pelas caixas de papelão; a cada nova distorção da sua voz, uma nova movimentação foi construída. Elinilson Soares, parecia discursar sobre a sua história, ao não compreender o que acontecia ao seu redor; perguntou ao público se alguém conhecia LIBRAS (língua brasileira de sinais) e convidou todos a purpurinar. Edu O., retornou a sua infância. Relatou a sua alegria ao ser convidado para uma festa de aniversário, e, ao mesmo tempo, a sua angústia ao ser invisibilizado. Ao convidar o público a reescrever uma nova história, distribuiu adereços de festa como óculos, tiaras, pratinhos de plástico de diferentes cores e, festejou. Dançou, cantou e, elenco e participantes se divertiram. Edu O. pediu aos participantes que registrassem o momento, ao fotografá-lo, reescrevendo assim uma nova história. Cada uma das performances aconteceu em momentos e ilhas diferentes.

Performance de Estela Lapponi. Foto Foto Renata Máximo Guidetti.

Já em “Silêncio”, o último momento, os performers e participantes retiraram, arrancam os papeis de toda a sala, deixando o espaço ocupado pelo vazio, para que a própria instalação operasse em suas dinâmicas. A instalação, ao possibilitar aos participantes “participar da cena”, proporcionou a experiência com a obra artística. Os abismos impostos a cada um do elenco, foi desconstruído e construído num fluxo contínuo. Nunca mais abismos é um ato de resistência, e indignação, que significa e ressignifica o corpo com deficiência na dança e na sociedade.

Edu O. é coreógrafo, dançarino, escritor e ator. Participou do intercâmbio cultural com diferentes companhias europeias dentre elas a Candoco Dance Company, e dentre o seu repertório de criação artística estão “Ah, se eu fosse Merlyn”, Striptease bicho” e “Judith quer chorar, mas não consegue”. Atualmente é professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, diretor do Grupo X de Improvisação, e doutorando em difusão do conhecimento acerca da relação dança e deficiência na mesma Universidade.


* Renata Máximo Guidetti é mestre na área de Atividade Física Adaptada pela Universidade Estadual de Campinas (2023), e dentro da sua formação destacam-se a especialização em Laban no Instituto Sedes Sapientiae (2007) e pós-graduação latu senso em Arte Integrativa na Universidade Anhembi Morumbi (2003). Atuou como bailarina e professora do INTEGRARTE corpo de dança e da Escola Municipal de Arte-Educação Integrada Paulo Bugni (2000-2008) ambas em São Bernardo do Campo, como professora de dança e gestora em unidades do SESI (1998-2021) no grande ABCD, pesquisadora de campo no ponto de cultura “Bailando na Cidade” em Diadema (2007), atriz e na preparação corporal nas peças “Primeiras estórias” e a “Tempestade” com o Teatro da Transpiração em Santo André (2006-2007). Atualmente é aluna em duas disciplinas da pós-graduação e seu interesse de pesquisa é sobre dança e pessoa com deficiência.

** Esta resenha foi feita dentro da disciplina "Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 13a. Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.


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