Nesse quinto texto da série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança tem um caráter de crítica genética com um texto de Beatriz Sano sobre o processo de criação do solo Tudo de Novo – obra criada a partir da Bachiana no 5 de Villa Lobos para o projeto Solos Brasileiros, a convite da Oficina Cultural Oswald de Andrade.
tudo de novo[1]
de Beatriz Sano[2]
Cena 1
Cena 2
Diga repetidamente a palavra fome até que ela ultrapasse o sentido.
Diga repetidamente a palavra come até que ela extrapole o sentido.
Diga repetidamente a palavra mata até que ela mude o sentido.
Diga repetidamente a palavra perigoso até que ela transforme o sentido.
Diga repetidamente a palavra chama até que ela não tenha o mesmo sentido.
Diga repetidamente a palavra normal até que ela perca o sentido.
Diga repetidamente a palavra brasileira até que ela exceda o sentido.
Diga repetidamente a palavra devorar até que ela devore o sentido.
Diga repetidamente tudo de novo.
tudo de novo, minha mais recente pesquisa em dança, integrou o projeto Solos Brasileiros: Danças para Villa Lobos à convite de Marcus Moreno coordenador do núcleo de dança da Oficina Oswald de Andrade de São Paulo. O convite foi feito para que 9 artistas dançassem uma composição das 9 Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos. Por sorteio, cada artista ficou com umas das composições. A proposta para relacionar a música com a dança tornou-se ainda mais complexa quando inserida no contexto das comemorações da Semana de Arte Moderna de 22 que completou seu centenário em fevereiro deste ano.
Junto com o convite para a criação do solo foi possível acompanhar o grupo Ciclo de Estudos em dança: Modernismo Brasileiro e arredores da Semana de 22 ministrado por Paula Petreca que foi desenvolvido de forma remota com dois encontros por semana entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022. Na primeira fase do ciclo foram convidados dois pesquisadores: Rafael Galante, professor de História Social da Música e Rafael Guarato, historiador da dança e professor da Universidade Federal de Goiás. Na segunda fase, os artistas convidados a participarem do projeto Solos Brasileiros: Danças para Villa Lobos, Allyson Amaral, Ângelo Madureira, Eliana de Santana, Ivan Bernardelli, Jorge Garcia, Luis Ferron, Mariana Muniz, Morena Nascimento e eu compartilhamos os caminhos e processos artísticos para a criação proposta.
Dentre a diversidade de assunto apresentada no ciclo foi possível questionar se a Semana de 22 foi realmente um marco de renovação e experimentação da arte paulistana, ou só fez evidenciar o esforço dos artistas de uma elite em criar e exaltar a “nova cultura brasileira” deixando de fora muitos artistas para além da localidade do teatro municipal, pois sabe-se que as manifestações artísticas se encontravam num amplo e descontínuo processo.
Ao mesmo tempo, apesar de muitas críticas, com pouca expressividade na época, não se pode negar, que a Semana ressoou e reverberou para além do seu acontecimento. Mais do que supervalorizar ou depreciar as produções artísticas daquele momento, talvez seja preciso refletir sobre suas lacunas, seus apagamentos, suas contradições, e principalmente abrir a discussão para um espectro social mais amplo.
Outra questão foi o conceito de antropofagia inaugurada pelos modernistas. Ao trazer à tona a devoração do bispo Sardinha e toda a sua tripulação pelos índios Caeté, primeiro bispo da saqueada Brasil pelos portugueses, os modernistas reativam o mito extrapolando a literalidade do ato de devorar[3], fazendo reverberar posteriormente nas músicas de Caetano Veloso ou mesmo nas produções teatrais de José Celso com o teatro Oficina. Ainda é possível pronunciar a antropofagia dos tropicalistas?
Acompanhar o ciclo de estudos durante a criação do solo, também foi uma prática complementar para descobrir a dramaturgia da peça ou mesmo a construção da qualidade corporal.
A partir desse contexto foi possível aprofundar e mergulhar nas ideias borbulhantes ao redor do tema. Ao retirar da frase “Vamos comer tudo de novo” escrito por Oswald de Andrade na Revista Antropofágica em 1949, o fragmento “tudo de novo” torna-se o mote principal para a construção do solo.
tudo de novo abre a possibilidade de discutir as ações, os pensamentos ou eventos passados para, às vezes, repeti-los, ou ao contrário, abandoná-los de vez. A ação contínua pela repetição, pela retomada, pelo ciclo, pelos giros, os gestos possíveis e impossíveis de se repetir, a palavra repetida que perde ou extrapola o sentido foram ações para a dramaturgia da peça.
tudo de novo é mote para a reflexão de não apenas repetir, mas fazer do caminho anterior uma outra experiência, pois ao retornar reconhece-se a pequena diferença ou desvio daquilo que já está, e que não é mais o mesmo.
A peça se arriscou na musicalidade da composição das Bachianas Brasileiras nº5 de Heitor Villa-Lobos para não somente exaltar a sonoridade do compositor – considerado precursor de uma linguagem musical “genuinamente brasileira” – como também questionou a construção sobre a ideia de Brasil a partir de reflexões atuais.
Além disso, foi possível evidenciar a relação imbricada da música com a dança, neste caso específico, o embate entre uma composição clássica com uma dança chamada de contemporânea. Colocá-las no mesmo espaço/ tempo tencionou essa relação aparentemente óbvia e questionou se essa afinidade seria mesmo entrelaçada.
Devido a grandiosidade da Bachianas Brasileiras nº5, principalmente seu primeiro movimento Ária (Cantilena), originalmente composta por uma soprano e oito violoncelos, e também por ser a composição mais conhecida de Villa-Lobos, durante o processo, me deparei com a pergunta: Será que toda a música é possível de ser dançada?
Ao repetir intensamente algumas palavras em combinação com alguns gestos simples e experimentando complexificá-los pela própria retomada do gesto e palavra foi possível encontrar outros caminhos para a relação entre a música e a dança, e talvez ser levada e deixar ser dançada pela música.
Fazer e refazer, a ação pela repetição me fez rever os fatos passados, os arquivos registrados, e escrever ou dançar de novo o que já estava ali, como escreveu Leminski e ressoou no canto de Itamar Assumpção[4].
o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol
apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo
tudo de novo foi apresentado nos dias 18 e 19 de fevereiro de 2022 na Oficina Oswald de Andrade em São Paulo. Ficha técnica: Concepção e dança: Beatriz Sano | Adaptação sonora: Chico Leibholz | Música: Bachianas Brasileiras nº5 – Aria: Cantilena – Nashville Symphony Orchestra | Colaboração artística: Eduardo Fukushima e Júlia Rocha Compartilhamento de processo: Allysson Amaral | Desenho de luz: Gabriela Luiza | Desenho do flyer: Giu Nishiyama | Fotos: Dani Satyko | Captação de imagem : Paula Ramos | Leituras do texto: Júlia Rocha e Isabel R. Monteiro | Agradecimentos: equipe da Oficina Oswald de Andrade e todas as pessoas que participaram do Ciclo de Estudos em dança: modernismo brasileiro e arredores da semana de 22 ministrado por Paula Petreca.
Veja mais sobre a série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança:
Texto 1 – https://portalmud.com.br/portal/ler/danca-modernismos-brasileiros-e-arredores
Texto 2 – https://portalmud.com.br/portal/ler/do-eu-ao-nos
Texto 3 – https://portalmud.com.br/portal/ler/bocaaaaa-um-solo-de-allyson-amaral
Texto 4 – https://portalmud.com.br/portal/ler/apreciacao-ou-digressao-sobre-o-solo-tudo-de-novo
Texto 6 – https://portalmud.com.br/portal/ler/antropofagia
[2] Beatriz Sano é coreógrafa, dançarina e professora. Graduou-se em Dança pela Unicamp, faz parte da Key Zetta & Cia desde 2009, e desenvolve seus próprios trabalhos: Solo (2014), Estudo de Ficção (2017) e tudo de novo (2022). Nas suas peças autorais relaciona a voz e o movimento como parte indissociáveis para a criação em dança. Tem como parceiros artísticos: Eduardo Fukushima, Júlia Rocha e Isabel Ramos Monteiro. Em 2016 foi ao Japão aprofundar a técnica de seitai-ho e teatro nô que pratica no Brasil desde 2011 com Toshi Tanaka. Atualmente, cursa o mestrado em Artes da Cena na Unicamp e é professora da Escola Livre de Dança de Santo André.
[3] Rolnik, Suely. Antropofagia Zumbi – São Paulo: n-1 edições; Hedra, 2021. P.18.