Metas para 2023: dançar e esperançar

Crédito das Fotos: Francisco de Assis

Finalmente chegamos em 2023. O ano de 2022 parecia interminável e foi marcado por tantos acontecimentos crucias, que irradiam suas interferências à nível planetário: campanhas eleitorais latino-americanas realizadas em meio a atos antidemocráticos, a pandemia que parecia recrudescer mas volta a aumentar níveis de contaminação, a guerra na Ucrânia que afeta a condição alimentar do mundo inteiro e a Copa do Mundo de Futebol que tanto mobiliza milhões de dólares em torno do esporte mais consagrado de todos, como também sublinha no país que a sedia, as restrições de liberdades essenciais, que deveriam ser incontestáveis em pleno 2022.  

Felizmente no Brasil (mas com uma disputa muito acirrada) o campo político da esquerda terá oportunidade de retomar as diretrizes de desenvolvimento social, proteção à natureza e atenção à setores essenciais como educação e saúde. E claro, o tão esperado resgate do setor cultural do fundo do poço para onde ele foi jogado entre os anos de 2018 e 2022. Presenciamos nesse período um plano sistematizado de precarização, baseado na destruição de instituições, de políticas públicas e de garantias legais, assim como na declarada demonização de entes artísticos, projetos, figuras populares, espaços culturais, pequenos e grandes grupos, enfim, quase que a totalidade do setor cultural.

Mesmo com toda a expectativa que temos no caminho totalmente distinto que o governo eleito democraticamente irá tomar, será muito complexo lidarmos com as sequelas desse carimbo negativo atribuído à cultura e seus mais diversos derivados. O desmanche generalizado provocou alguns efeitos devastadores e o desrespeito está institucionalizado. Ainda teremos que conviver por um tempo, com pessoas de instituições e de governos estaduais e municipais que seguem escoltando a ‘antiga ordem’. Em Porto Alegre, por exemplo, a atual administração parece atribuir pouca ou nenhuma importância ao setor cultural. Segundo informações colhidas, o já parco percentual de recursos destinados à totalidade da área da cultura, que foi de 0,89% do total do orçamento municipal de 2022, caiu para – acreditem – 0,35% em 2023. A Lei Orçamentária Anual deverá ser votada na câmara de vereadores – e provavelmente aprovada pela maioria ligada a essa ideologia – até antes do Natal.

A secretaria de cultura local junto das coordenações artísticas e alguns poucos espaços públicos e privados, tentam se articular e complementar propostas e valores através das incensadas parcerias público-privadas, e assim, conceder um ínfimo de políticas públicas e oportunidades aos artistas. Mas é evidente o desrespeito com a área em todas as suas instâncias. E além de insuficiente, o acesso aos recursos é minado ainda por um pleito maximizado e desproporcional entre grupos e artistas – não se trata mais de concorrência leal, mas de um clima de cerceamento e até torcida contra os próprios pares.

E todo esse péssimo clima repercute diretamente no modus operandi de produtores locais e agentes culturais ligados a instituições e governos, assim como no comportamento de parte do público que acaba deixando de frequentar atividades culturais e artísticas. Por parte das gestorias de produção, percebe-se que há algo estranho no ar, um comportamento que tanto poderia ser enquadrado como falta de preparo técnico quanto a necessidades básicas relacionadas ao trabalho em artes cênicas, como uma proposital má vontade e uma certa dose perversidade. Não pretendo aqui generalizar e, obviamente, colhi muitos depoimentos com colegas de todas as áreas (não somente da dança flamenca), nos quais todos relatam informações similares. Aparentemente, algumas instituições público-privadas e parte do setor governamental (prefeituras, estado e federação) estariam normalizando a precarização e os maus tratos.

Imaginário que se fortalece e encontra respaldo na política anticultural plantada com vigor entre os anos de 2018 e 2022, com falas depreciativas sobre o trabalho de artistas, técnicos e produtores, e que acabam ecoando em desrespeito declarado. Até cobrar pelo trabalho artístico, de repente, virou sinônimo de certo elitismo ou inadequação, fortalecido pelo desconhecimento por parte da população geral sobre o que realmente seja o trabalho de um artista.

São muitas e urgentes as questões que surgem: é possível reverter esse quadro? Como voltar a formar público nessa condição? Como reformular as tratativas de produção? Como seguir dançando? Eu não tenho a pretensão de apresentar as respostas, primeiro por me sentir pequena frente a tamanho estrago e também, confesso, por estar exausta de tanta luta. Mas posso, humildemente, apontar alguns insights.

Na contramão dessas estatísticas, nesse intenso e último mês do ano presenciei muita atividade artística na cena flamenca nacional. Crédito do meu último texto aqui para o portal, através de um breve panorama, demonstrei a vocês a forte característica de autonomia do movimento flamenco no Brasil. Praticamente todos os grupos ou artistas solos realizam projetos de forma independente. É verdade que alguns deles contam com raros patrocínios e mecenatos, outros poucos alcançam financiamentos públicos ou privados via leis de incentivo ou editais. Mas a imensa maioria se arrisca por bilheterias. E nesse caso específico, o que concretamente importa, é que as plateias que o flamenco forma, têm se demonstrado receptivas, atentas, algumas vezes dispostas inclusive a participar de mais de uma atividade por semana.

Penso (talvez de forma naif) que essa “resiliência” está ligada à paixão que o flamenco desperta lá no íntimo de cada pessoa – referenciando aqui criadores e espectadores. Uma força que invade e avança, que não pode ser contida (ou explicada), que hidrata qualquer aridez que tente persistir. Posso até servir de exemplo concreto dessa ação afirmativa: mesmo me sentindo devastada por tantos desatinos, sigo e resisto, danço, sigo abrindo espaços, escrevo meus relatos, estou aqui e agora com vocês, ainda não desisti… É uma atitude de resistência com contornos de afeto – algo parecido com um poema de Manoel de Barros – autor que eu adoro, e que compartilhei hoje em minhas redes, de um querido amigo que a dança me deu nesse ano: “Quem anda no trilho é trem de ferro / Sou água que corre entre as pedras: / liberdade caça jeito.”

Agradecida pela oportunidade de poder compartilhar nesse portal opiniões, relatos e alguns recortes da cena flamenca brasileira, me despeço de vocês nesse ano de 2022 e cheia de esperança deixo um convite para 2023: apaixonem-se (novamente) pela dança e dancem sempre e muito, especialmente quando estiverem olhando.

A bailar sin más!

Daniele Zill

Daniele Zill

Ver Perfil

Faz parte do coletivo Del Puerto (Porto Alegre/1999), onde atua como intérprete, coreógrafa e produtora da COMPANHIA DEL PUERTO e professora de dança na ESCOLA DEL PUERTO, da qual é também diretora geral. Performer/criadora e orientadora corporal em trabalhos ligados à pesquisas feministas e de trajetórias. Premiada no Troféu Açorianos de Dança/RS com melhor Espetáculo em 2007, 2008 e 2012, Melhor Produção 2012 e 2016, Prêmio Funarte Klauss Vianna 2013, Prêmio de Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena em 2015, Prêmio FAC/RS 2018 de Circulação de espetáculos e Prêmio Festival Funarte Acessibilidança 2020/21. É graduada em fisioterapia, especialista em Reeducação Postural e Acupuntura, mestra em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS (2017) e autora do livro GESTO FLAMENCO (Edições Funarte,2020).