Crédito das Fotos: Primeiro Ato 40 anos tecidos na pele. Foto Guto Muniz
O grupo de dança Primeiro Ato completou em 2022 quarenta anos de existência, com mais de vinte espetáculos em sua história. Dirigido por Suely Machado, o grupo tem como característica, desde sua fundação, a experimentação, investigação e ampliação do universo da dança contemporânea, colaborando com vários artistas de diferentes áreas como artes plásticas, arquitetura, música e teatro. Dentre esses artistas podemos citar nomes de grande relevância como Zeca Baleiro, André Abujamra, Ronaldo Fraga, Babaya e Titane. Além disso, é claro, nomes importantes da dança também já passaram por lá, seja dançando ou coreografando, como Dudude Herrmann e Tuca Pinheiro. Os próprios bailarinos se envolvem ativamente no processo de criação, sendo coautores dos espetáculos, e vários deles já foram repetidamente premiados por sua atuação nas montagens do grupo.
Como parte da celebração de aniversário, foi apresentado “Tecidos na pele”, no Teatro Sesiminas. Trata-se de um espetáculo que passa pela trajetória da companhia a partir de alguns dos figurinos desenvolvidos ao longo de sua existência, que foram assinados por Marco Paulo Rolla, Pablo Ramon, Ronaldo Fraga e Silma Dornas. Os bailarinos Alex Dias, Camila Felix, Dalton Correia, Elton de Souza, Marcela Rosa, Marcella Gozzi e Robert Henrique conceberam o espetáculo a partir dos sentimentos evocados pelas memórias contidas nessa pele que é o figurino do dançarino. Além deles, a presença marcante do bailarino Uziel Ferreira trouxe a interpretação do espetáculo na língua de sinais, tornando a apresentação mais inclusiva. E o fez de modo muito poético, totalmente integrado ao espetáculo, indo muito além de uma ferramenta de inclusão, atuando como um elemento estético e expressivo que trouxe ainda mais beleza e sentimento.
A iluminação, as coreografias e sua execução, as músicas, os elementos cênicos e toda a concepção do espetáculo são dignos de nota e seria natural falar sobre eles. Porém, sem diminuir em nada a grandeza do trabalho artístico apresentado, algo mais tomou a cena. O destaque da noite foi, inesperadamente, a roda de conversa que ocorreu após, se tornando um espetáculo à parte. Ela contou com a presença de convidados de diversas áreas artísticas que trabalharam com o grupo em produções anteriores. O bate-papo teve início com Suely Machado falando da razão para ele ocorrer – a necessidade de registrarmos nossa história artística, seja por meios materiais que capturam e retém as memórias, seja pelo meio efêmero de um espetáculo ou de uma conversa, que também são capazes de proporcionar experiência de trocas e afetos e que, certamente, perduram no coração dos presentes.
Embora o espetáculo tenha a duração de 45 minutos, a conversa se estendeu por mais de duas horas. O público variado, composto por velhos amigos, ex-alunos e desconhecidos, ouviu, participou e ficou até o fim. Uma das pessoas que se pronunciou, em dado momento, disse nunca ter visto nenhuma produção da companhia anteriormente. Ainda assim, sua fala foi regada por lágrimas ao perceber a grandiosidade da dança na história de um grupo, na entrega dos artistas, nas dificuldades enfrentadas por eles, na confluência de talentos e esforços que ocorre em todo o processo antes daquele que o público vê, no ato de resistência que é dançar profissionalmente, especialmente nesse nosso país. Prova disso é um grupo da relevância do Primeiro Ato ter feito toda essa produção da comemoração de suas quatro décadas, após um período longo de pandemia, sem sequer um patrocínio, deixando claro o descaso com que a arte é, frequentemente, tratada.
Os convidados contaram histórias que viveram no grupo, revelaram tanto momentos pessoais quanto relataram o desenvolvimento profissional de cada um e também um contexto histórico maior. A requisitada Babaya, por exemplo, que já treinou grupos e artistas importantes com suas técnicas de preparação vocal, como o Grupo Galpão, a atriz Marieta Severo e o ator Leonardo Brício, falou sobre como começou a desenvolver sua técnica quando se deparou com o desafio de treinar vocalmente os bailarinos do Primeiro Ato. As técnicas vocais vigentes na época se chocavam com a postura dos bailarinos, sempre com suas “barrigas para dentro”. E foi esse desafio que começou a conduzi-la em sua pesquisa, possibilitada pelo convite de Suely, que entendia que o aparelho fonador também é parte do corpo e, portanto, também devia ser trabalhado pelos dançarinos. Da mesma forma, com sua visão de trazer juntos os vários fazeres artísticos, ela colocou a cantora Titane para dançar, que a princípio havia sido convidada para cantar. A cantora contou como esse espaço de pesquisa e abertura foi importante para sua carreira, ao perceber como a dança permitia muito mais experimentação e inovação do que encontrava no meio musical.
A resiliência, sem a qual dificilmente uma companhia de dança sobreviveria e floresceria por tanto tempo no Brasil, foi ressaltada em vários momentos. O figurinista Marco Paulo Rolla comentou sobre as dificuldades específicas ainda maiores que encontramos no estado de Minas Gerais em comparação com alguns outros lugares. Ele disse, com o bom-humor de quem é capaz de superar as diversidades e ainda aproveitar-se delas para encontrar formas criativas e especiais de seguir adiante “Minas Gerais… criando caminhos mais complexos para a gente ficar melhor”. Suely, por sua vez, trouxe uma história de sua família ao responder a uma pergunta do público sobre como conseguiu lidar com a pandemia e a perda de patrocínio, mesmo após tanto tempo de trabalho, tantos prêmios e tanta luta. Ela contou que seu pai começou a perder a visão muito cedo, mas não deixou que os filhos soubessem, pois a lamentação que poderia gerar não ajudaria a resolver a situação. Ela aprendeu com ele que “o tempo que você perde no drama, é o tempo que gastaria para resolver o problema”. Assim, essa mulher transbordante de emoções, sentimentos, expressão, deixa propositadamente de fora de seu repertório pessoal o sentimento de vítima e se firma como uma sobrevivente, desbravadora e líder inspiradora. De fato, foram muitas as falas dos seus companheiros que ressaltaram sua inteligência, suas ideias firmes que, no entanto, sempre estavam abertas à mudança se esta fosse apresentada de forma boa o bastante para convencê-la.
No decorrer da roda de conversa também foi falado sobre o Primeiro Ato em seu papel educativo como escola, como foi construído seu projeto pedagógico a partir do entendimento da dança como uma ferramenta terapêutica, que traz para a criança a consciência de si como um ser corporificado. A escola também tem projetos sociais, e uma ex-aluna de um desses projetos se levantou para agradecer, emocionada. Ela falou da importância desse trabalho que levou a dança para um lugar em que as crianças conheciam o toque como violência, dando a elas a experiência do toque como amor, como afeto.
A conversa final ter tido tanto envolvimento do público quanto o espetáculo teve, deixou claro que há uma demanda do público por entender os processos artísticos e trocar experiências com os artistas, de ouvir sobre a vida deles do lado de lá do proscênio e contar-lhes da sua experiência do lado de cá. Esse tipo de conversa educa o público quanto à realidade da vida profissional e do envolvimento pessoal daqueles que vivem a arte. Ela aproxima, acolhe e cativa o público. Ela mostra o lado tão humano daqueles seres que se movem com uma força divina sobre o palco, e permite que aqueles que se sentam e absorvem o espetáculo possam também ter o momento de expressar seus sentimentos, sua gratidão, sua visão.
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