Dança como gesto de pertencimento

Quando transito pelo bairro e cidade onde resido, observo o modo como outras pessoas e o próprio poder público se relacionam com esse lugar. Observo minhas ações e gestos. Eu, corpo implicado no cotidiano, caminho. Dessa maneira me sinto pertencente. É um jogo que empresto da improvisação em dança: ser observadora em ação.

Da experiência de habitar, surgem perguntas e o desejo de dançar. Esse “caldo” de perguntas sobre assuntos distintos passam pelo corpo. Este corpo. Percebi que sempre estive rodeada de rios urbanizados. Na infância, o Rio Pirajussara; agora, o Rio Embu-MIrim. Também descobri há um ano que minha avó materna nasceu em um povoado formado por tropeiros, perto do rio Turvo, no noroeste paulista. Se olharmos para a história do Estado de São Paulo, da capital aos interiores, é possível identificar que são muitas as cidades que surgem atreladas aos rios existentes nesses territórios.

Pergunto: como os rios afetam os corpos das pessoas em comunidades que os rodeiam? Como as pessoas afetam os rios, suas margens e suas águas? Como as políticas, noções de progresso e de modernidade afetam pessoas e rios? Quais são as minhas memórias do córrego Pirajussara? Como me relaciono com o Embu-Mirim? Quais são as memórias sobre o rio Turvo, cultivadas no povoado onde minha avó materna nasceu?

Assim surge o projeto DESÁGUA, contemplado pelo Proac Dança nº 3, de 2022, em torno de territórios e comunidades à margem dos rios Embu-Mirim, Pirajussara e Turvo. Eles fazem parte da minha autobiografia, lugares vividos no presente, no passado e por antepassados.

Na foto: Luciana Bortoletto, Élder Sereni e Marcel Moreno

No texto A CIDADE COMO BEM CULTURAL Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano, do professor “Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, ele diz que

A primeira dimensão é a da cidade como artefato. A cidade é coisa feita, fabricada. Artefato, no sentido mais genérico, é um segmento da natureza física socialmente apropriado, isto é, ao qual se impôs, segundo padrões sociais, uma forma ou uma função ou um sentido(…). Mas tal artefato não se gerou numa atmosfera abstrata: foi produzido no interior de relações que os homens desenvolvem uns com os outros. A segunda dimensão, assim, é a do campo de forças(…)para ilustrar um espaço definível de tensões, conflitos, de interesses e energias em confronto constante, de natureza territorial econômica, política, social, cultural e assim por diante(…)Nesta perspectiva, por exemplo, é que se têm desenvolvido estudos de processos de formação e transformação – a urbanização, seus fatores e contingências, seus efeitos(…). A imagem que os habitantes se fazem da cidade ou de fragmentos seus é fundamental para a prática da cidade. Apesar da voga recente do imaginário urbano como tema de estudo, é raro encontrá-lo inserido entre as demais dimensões e tratado adequadamente como fenômeno social. Ora, para compreender a cidade como bem cultural, é preciso enfrentá-la simultaneamente nas três dimensões. O bem cultural tem matrizes no universo dos sentidos, da percepção e da cognição, dos valores, da memória e das identidades, das ideologias, expectativas, mentalidades, etc.*

A dança, em Deságua, é um meio, pois me conecta com pessoas, memórias orais, lugares de afeto. E é um fim, à medida em que revela o que o corpo dá conta de dizer, o discurso do corpo atravessado por tudo isso. Causa e efeito das relações que estabelece com o entorno. Pode ser que a dança gere conflito, pode ser contraditória, inacabada, pode ser que se esvazie de sentido diante daquilo que testemunha. O que sei até aqui é que há esse engajamento, um desejo, uma chama que me lança a criar, questionar e jogar com o que surge no processo. Convido vocês a acompanharem essa aventura!

Ao longo de 2023 produziremos diários de bordo a serem publicados no nosso perfil do instagram e também no Portal MUD. Realizaremos inventários com base na Museologia Social. Depoimentos e memórias orais se transformarão em um dossiê a ser devolvido às comunidades e às cidades de Embu das Artes-SP, São Paulo-SP e Bebedouro-SP.

São micropolíticas que podemos construir à medida em que ocupamos e praticamos os espaços públicos com arte. Talvez as perguntas lançadas no início deste texto adquiram outros sentidos, sejam reformuladas ou respondidas. Talvez os rios se transformem diante de nossos olhos. Talvez eu me transforme e surpreenda.

Afinal, as coisas têm o valor que recebem de pessoas. 

●Texto disponível em: ReP USP – Detalhe do registro: A cidade como bem cultural: áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance da preservação do patrimônio ambiental urbano. [Debate]

● Para conhecer o núcleo e o projeto Deságua http://www.instagram.com/avoa.nucleo.artistico

Luciana Bortoletto

Luciana Bortoletto

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Artista da dança com atuação transdisciplinar. Pesquisadora e educadora somática. Coreógrafa/diretora do …AVOA! Núcleo Artístico (2006). Explora cruzamentos entre dança e poesia haicai e a aproximação entre o campo da arte e a museologia social, atuando de maneira imersiva em espaços públicos urbanos, com propostas coreográficas relacionais. Desenvolve projetos de manutenção de pesquisa e criação, alguns contemplados pelo Programa de Fomento à Dança. Com a performance Solo de Rua, recebeu o prêmio Denilto Gomes 2013. Cursa bacharelado em Artes Visuais e formação em Psicologia Corporal  Reichiana. Editora de conteúdo do acervo Ida Rolf Library. Compõe o atual conselho da CPD (2021-2025). Estudou e trabalhou no Estúdio Nova Dança entre 1999 e 2006, constituindo uma base em seu percurso histórico como artista.