MUSEU DA DANÇA

Do eu ao nós

Imagem: Eliana de Santana. Foto Hernandes de Oliveira | Quarta, 27 de Julho de 2022 | por Portal MUD |

Continuando a série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança, Jane de Oliveira traça reflexões sobre problemáticas da modernidade tão vivas no presente a partir da apreciação do solo Movimento no 1, de Eliana de Santana - obra criada para o projeto Solos Brasileiros, a convite da Oficina Cultural Oswald de Andrade.

Notas e divagações sentimentais sobre Movimento no 1 de Eliana de Santana[1]


texto de Jane Oliveira[2]

Cena 1.

Minha terra tem Palmares que sendo negros são racistas

Matar ontem o passarinho com a pedra que se atirou hoje

Torrar o mito da democracia racial

Do povo cordial

Versos de um poema de Adriana Calcanhotto

publicado na Folha de São Paulo no dia 21 de fevereiro de 2022,

5 dias depois da estreia do solo de Eliana de Santana

na Oficina Cultural Oswald de Andrade


Passos na madeira. A primeira sensação é auditiva. Ouvimos atrás de nós um salto alto que se aproxima.

Eliana de Santana entra sorrindo no palco usando um vestido justo de festa com babadinhos prateados em tafetá na altura do joelho e um salto rosa, meio brilhante, quase furta-cor. Quase elegante, mas pendendo para o cafona. Na cabeça, um enorme capacete de flores artificiais multicoloridas que balançam em longas hastes esconde seus cabelos prateados. Ela para de frente para o público, perto de nós, descentralizada. Me olhem. Ela nos observa. Ficamos assim, frente a frente, por um incômodo instante. De repente, um emaranhado de vaias ocupa a sala.

Penso em Brecht por um segundo ou dois segundos.

O olhar da artista é meio sem graça, meio metido, muito irônico e curioso. Não, não é isso. Na verdade, são pelo menos duas camadas, dois olhares. Há algo construído em cena, uma espécie de persona metida a poderosa. É ela que nos encara com seu salto alto, com uma atitude entre o sem graça e o desafiador. Ela é a camada externa, a construção, a máscara. Por trás dela, ou melhor, de dentro dela, a artista nos observa atenta, irônica e provocadora. Ela analisa nossa reação.

Quem é o público agora? Onde é o palco? Tento não ficar sem graça.

Suas mãos flutuam lentamente, apenas insinuando dois gestos que nunca se completam: mãos na cintura, desafiadoras, mãos no ar, meio de lado, à la Carmen Miranda. O tempo se arrasta o suficiente para que cada um de nós possa sentir, observar e questionar.

Um entre-gesto. Um gesto de hipnose entre sujeito e objeto.

Me vem uma lembrança de um outro espetáculo de Eliana, chamado Dos Prazeres, que fazia referência à obra colorida e polivalente do artista modernista plurivalente Heitor dos Prazeres, e que assisti encantada em 2019. Uma obra lenta e triste que me revelava muito do desencanto do Brasil pós-golpe de 2016. Tento entender qual a ponte entre os dois espetáculos, se é o vestido, se são as cores das flores, a inexistência da quarta parede ou a dinâmica lenta do movimento. Ambas as obras certamente englobam o melhor do nosso modernismo: o tom político, provocador, inovador e antiburguês.

Algo novo surge no som. As vaias agora são atravessadas por locutores. Festivais? Tropicália? Um interlocutor acusa a plateia de não entender de arte, uma outra voz - talvez Caetano – tenta politizar a vaia durante a vaia. Fico pensando em qual seria a potência política da vaia. Talvez seja isso que Eliana quer testar. Continuo me sentindo exposta e sem controle da situação, mas isso não mais me incomoda. Já estou dentro do jogo.

Há cem anos, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi marcada por vaias. Reza a lenda que o público composto pela burguesia branca e provinciana de São Paulo não entendeu nada ou então não quis entender. A elite queria ser moderna, mas estava por demais apegada à tradição e aos bons modos. Talvez a burguesia tenha intuído o perigo que é uma arte que ilumina as mazelas do mundo, nos faz estranhá-las e sugere futuros diversos. Certamente não gostou das ousadias e provocações. Chamou de molecagem, de mau gosto. Até o pé machucado de Heitor Villa-Lobos foi motivo de desconfiança.

Sem dúvida, os artistas que organizaram o evento modernista queriam provocar, questionar, desprovincializar a cultura e questionar uma tradição antiquada e fora do lugar. Era preciso inventar algo novo para desestabilizar o estado da arte da metrópole cafeeira. Então, de certa maneira, as vaias haviam sido convidadas para o evento. Neste nosso fevereiro sem carnaval de 2022, Eliana de Santana coloca as vaias no palco e inverte o jogo da cena. Coloca os papéis sociais do público e do artista em movimento. Depois de dois anos de congelamento da luta, da vida cultural, dos movimentos rotineiros da vida na periferia do capitalismo, o mais importante se revela nessa cena: nada é imutável. Provocação modernista com uma potência política capaz de tirar-nos da passividade e da zona de conforto. Me sinto uma cobaia feliz e rio por dentro. Neste dia eu havia pegado o metrô pela primeira vez depois do isolamento, ainda de máscara, ainda com medo. Se o espetáculo acabasse naquele momento, já teria valido a pena.


Cena 2.

Contra os covardes e eruditos de aquário

A invenção

A surpresa

Falar juaguanhenhém

A periferia como potência

Do mesmo poema de Adriana Calcanhotto

citado acima


Em cena, num canto, Eliana tira a escultura de flores da cabeça e coloca um casaco de linho azul marinho, mais comprido atrás do que na frente. Um casaco de doutor. Ela carrega um banquinho de piano e umas folhas de papel para a frente do palco, mas dessa vez atua do lado oposto ao lugar onde estou sentada. Assistimos à construção da nova cena nos mínimos detalhes. Ela coloca os óculos e pega as folhas para ler. Do lado de fora do maço, uma folha plastificada com uma bandeira do Brasil. No lugar de ordem e progresso, leio Pau-Brasil. É a capa do livro de Oswald de Andrade. Ela começa a ler partes do Manifesto Antropófago. 

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica.
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas…

De repente, uma pergunta à la Caetano e uma transição cortante para os fatos, aqueles que nos atravessam diariamente:

Brasil, mas quem pariu tal gente?
Assassinatos de negros aumentam 11,5% em dez anos. Negros no país sofrem mais violação dos direitos humanos.
Maestro, música!

Alguns temas precisam ser tratados sem anestesia. Eliana cobre o rosto com a bandeira Pau-Brasil enquanto o som solene da Bachiana Brasileira no. 8 de Villa-Lobos aumenta a densidade da atmosfera que nos cerca. Mais duas ou três vezes ela recomeça, sempre costurando manifestos oswaldianos, dados ultrajantes e estranhamente rotineiros e gestos de poesia do corpo, que encontram a música e nos convidam a construir relações e sentir o peso do país.

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Oswald de Andrade, Manifesto Pau-Brasil, 1924

Como observou Ana Carolina Yamamoto, o sotaque paulistano parecia levemente enfatizado. Faz sentido. A Semana de Arte Moderna representa o modernismo paulistano, que ganhou força no momento histórico onde a cidade começava a disputar o lugar de centro da cultura com o Rio de Janeiro, que era a capital. Oswald certamente falava paulistano de poeta bem-nascido.

As transições vão ficando mais violentas. Tudo é Brasil, mas tudo é também muito desigual.
A cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil. Vinte e três mil jovens negros assassinados por ano. É um escândalo.

Dados estatísticos. Dados concretos, dados da ONU. São assassinatos, 23 mil assassinatos de jovens negros por ano constituem um genocídio contínuo e muito brasileiro. O horror é cotidiano. Eliana parece voar, mas não há leveza nesse voo.

Eliana decidiu que não vamos ficar aqui sentados olhando sem fazer nada. Minha cabeça está a mil e eu estou derretendo na cadeira. A sala 7 da Oficina Cultural Oswald de Andrade está quente. A máscara PFF2 esquenta demais e coça meu nariz. Mas o pior está lá fora: os dados estatísticos são, na verdade, pessoas e a barbárie acontece enquanto estou sentada na plateia, enquanto você lê esse texto.

Ela continua, repete, costura discursos, monta um novo manifesto com fragmentos e informações roubadas e costuradas, fragmentos de textos de naturezas distintas, de tempos históricos distintos. Cem anos. Fragmentos de discursos produzidos neste mesmo país. Duzentos anos. Um país que é o mesmo e é totalmente diferente. Um Brasil que sempre foi muitos. Um Brasil abstração. Oswald era de família rica. Eliana é uma artista negra, uma artista da dança.


Cena 3.

Mascar as máscaras

Flambar Villa-Lobos

Do mesmo poema de Adriana Calcanhotto

citado acima


A iluminação diminui. Eliana tira o casaco, o vestido, os sapatos. Sobre um figurino simples todo preto ela veste uma camisa branca larga de tecido leve. Ouvimos mais um trecho da Bachiana no. 8. Será esse o movimento 1? Não tenho certeza e isso me incomoda. Mesmo depois de dois meses de ciclo de estudos, leituras, discussão, o que eu sei sobre o modernismo brasileiro? Me dou conta do meu despreparo, do meu atraso, enquanto lembro que o nome do programa é Solos Brasileiros: Danças para Villa-Lobos. Agora Eliana dança e é realmente um solo.

Enquanto escrevo começo a duvidar de mim, do texto, de qualquer documentação que tente dar conta dessa dança. Melhor avisar o leitor. Vou contar coisas, mas não vou dar conta. Não desta vez, não nessa cena.

Me lembro de mãos que flutuam como penas caindo, de gestos suaves, que quase pegam algo no ar, de uma frase indescritível que se repete, que se transforma e que me corta o coração. Os calcanhares quase nunca tocam o chão. Ela percorre o espaço com delicadeza, mas aos poucos um senso de urgência e desespero começa a temperar o movimento. Com braços erguidos para cima, colados nas orelhas, ela retorna ao início. Me lembro do semblante sério, da meia-luz, de mãos cobrindo o rosto.


Cena 4.

A contribuição trilhardária de todos os erros

O samba é o denominador comum

O surdo um na multidão

A batida ensurdecedora dos silenciados

Do mesmo poema de Adriana Calcanhotto

citado acima 


Eliana tira a camisa branca e coloca novamente o sapato rosa. A iluminação clareia o palco de madeira com seu fundo oval e suas janelinhas. Ela desdobra uma bandeira do Brasil e estica-a no chão. Ela se deita em cima da bandeira ali perto de mim. Os primeiros acordes da Mulher do Fim do Mundo surgem educadamente, seguidos pela voz de Elza Soares que enche a sala como um vendaval.

Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de sangue na ponta dos pés
A multidão avança como um vendaval
Me joga na avenida que eu não sei qualé

Mulher do Fim do Mundo, canção de Rômulo Froes e Alice Coutinho,

eternizada na voz de Elza Soares no seu primeiro álbum de temas inéditos em 2015

Consigo sentir minhas lágrimas rolarem até a linha da máscara, onde desaparecem. Elza, artista brasileira negra, a rainha máxima do nosso fim de mundo, morreu não faz nem um mês. É preciso lembrar que Mulher do Fim do Mundo foi o primeiro disco de canções inéditas da extraordinária carreira de Elza Soares. Na época da gravação ela tinha 85 anos. Isso foi no ano anterior ao golpe. O disco começa com ela cantando à capela uma música que é um poema de Oswald de Andrade e que fala de escolas de samba e de navio negreiro. A Mulher do Fim do Mundo, esse hino à resistência e à alegria, vem logo em seguida. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça, diz Oswald no manifesto. E esse é o nosso segundo fevereiro sem carnaval. Meu choro é muita coisa além de carnaval, e ainda assim não é nada.

Vemos um corpo negro deitado em cima da bandeira do Brasil. Bandeira que a maioria de nós aprendeu desde criança a amar e respeitar. Bandeira que muitos de nós aprenderam na última década a rejeitar, desprezar, odiar. Tento distanciar o olhar, tirar a emoção do trauma. Quantos significados cabem numa imagem? Vejo a violência, o estereótipo da preguiça macunaímica, a praia e a canga, o desemprego, as populações de rua. Agora ela levanta uma ponta do tecido da bandeira com uma das mãos e vemos um corpo sem rosto. Sinto as lágrimas subindo por dentro, sou um vulcão de tristezas brasileiras. O impacto de um corpo negro anônimo estendido no chão do Brasil. Mais um.

Penso em Miguel, Moïse, Marielle. Como era mesmo o nome do moço que vendia balas? Hiago Bastos, 22 anos. Minha mente repete em looping os dados citados na cena anterior: “A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil”. Como entender um genocídio sem apagar as individualidades? Penso na pandemia, nas milícias, nos descasos.

A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
Mulher do Fim do Mundo
canção de Rômulo Froes e Alice Coutinho,
eternizada na voz de Elza Soares

Agora Eliana se levanta, vai para o outro lado do palco e começa a sambar sobre a bandeira. A pele preta, o salto rosa. Sei que o estereótipo da mulata está ali, sendo convocado ao palco, mas percebo que ele vem soterrado por tantas outras camadas. Penso que a artista samba apesar do Brasil, apesar da ausência de carnaval, apesar do genocídio, apesar do descabido. Sambar é também resistir e desafiar a ordem vigente. Lágrima de choro na ponta dos pés. Sinto que ela ainda nos observa, nos testa, nos questiona. E Elza lá, lá, lá, lá, lá, lá… E Brecht na minha cabeça lá, lá, lá...

Eliana agora se agacha, uma mão no rosto, como que para esconder o choro, o outro braço esticado com a bandeira na mão.

Caramba, Eliana. Penso no que fazer, como se a bandeira estivesse na minha mão: largar ou tentar resgatá-la. Percebo que a bandeira também está na minha mão. E na sua. Estamos no terceiro ano da pandemia do coronavírus. É ano de eleição. O que vamos fazer?

Como que para dar mais uma volta no parafuso, a artista se retira do palco e se coloca ao lado da plateia, ao meu lado, bem ali, com a bandeira na cintura, como se fosse um avental de cozinha. Ela olha fixamente para o palco vazio. Ficamos todos assim, ouvindo a voz de Elza que, como um trovão, eletriza o palco vazio. Penso em outro poeta moderno.

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
Trecho do poema E agora, José?
Carlos Drummond de Andrade, 1942

O palco interroga, convoca. A resposta, como o movimento de Eliana propõe, só pode ser dada pelo corpo coletivo. Somos muitos Josés. Sou eu, você, leitor, eleitor, bailarino, poeta, leiteiro, morador de rua, professor, pescador, frentista, percussionista, seringueiro, estudante, operário, índio, lavrador, barista, maconheiro, crítico de dança, guarda de rua, cabeleireira, boiadeiro, cantora de MPB, skatista, motorista, doutor, empregada doméstica, açougueiro, carnavalesco, catador, jogador de futebol, cartunista ou pedreiro. São também o irmão do vendedor de balas, o tal peixe amarelo, o cantor de rap, a viúva da vereadora, a mãe do menino, o imigrante pobre e a coreógrafa. E nós aqui chorando de máscara nessa pequena plateia, e você aí na sua tela, no seu sofá.

A música acaba, Eliana sai pela lateral. Vazio. Silêncio. Cheiro de pergunta no ar.

Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.
Ditado Iorubá
Penso no grito de Emicida no palco do Teatro Municipal de São Paulo em novembro de 2019: tudo que nóis tem é nóis e é tudo pra ontem. Haja pau e haja pedra.


Veja mais sobre a série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança:

Texto 1 - https://portalmud.com.br/portal/ler/danca-modernismos-brasileiros-e-arredores

Texto 3 - https://portalmud.com.br/portal/ler/bocaaaaa-um-solo-de-allyson-amaral

Texto 4 - https://portalmud.com.br/portal/ler/apreciacao-ou-digressao-sobre-o-solo-tudo-de-novo

Texto 5 - https://portalmud.com.br/portal/ler/tudo-de-novo

Texto 6 - https://portalmud.com.br/portal/ler/antropofagia


[1] Esse texto é uma interpretação pessoal e tateante de um solo que a autora assistiu emocionada uma única vez e, portanto, não pretende dar conta de toda a riqueza da construção poética da obra e da performance testemunhada.

[2] Jane Oliveira é professora, bailarina amadora, artista plástica e pesquisadora em dança. Formada em Biologia e em Letras pela Universidade de São Paulo, fez seu doutorado pela FFLCH-USP. Foi professora universitária por quase uma década, além de produtora de espetáculos e cursos de história da arte. Faz parte do corpo de avaliadores da Incomum Revista ligada ao Instituto Federal de Goiás. Em 2021 ministrou o curso “Dança e Política: relações entre a luta antifascista e a origem da dança moderna” no SESC-CPF e sua tese “Martha Graham na linha de frente do movimento progressista” foi selecionada para publicação na nova série de e-books da editora ANDA (Associação Nacional de Pesquisadores da Dança) prevista para o segundo semestre de 2022.



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