Abrindo uma série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança, Paula Petreca nos conta sobre o ciclo de estudos Modernismos Brasileiros e Arredores da Semana de 1922, que foi conduzido a convite da Oficina Cultural Oswald de Andrade, e de que forma a modernidade na dança brasileira pode ser mapeada através da documentação histórica.
Entre Novembro de 2021 e Fevereiro de 2022, um Ciclo de Estudos nominado de Modernismos Brasileiros e Arredores da Semana de 22 teve lugar através de videoconferências que reuniram mais de trinta participantes. Entre artistas, estudantes, historiadores, curiosos, um grupo se estabeleceu para estudar as conexões entre a História da Dança Brasileira e uma série de ideias estruturadas por movimentos modernistas dos diferentes Brasis que povoam esse território.
Importante observar, que o ponto de partida que nomeia o curso - os arredores - propõe o escape em relação ao objeto de análise, orientando o percurso dos estudos para uma escuta plural da história, abrindo interesses pela incursão por desvios em relação a uma historiografia da dança macroscópica/ tradicional, nos levando ao adentrar por caminhos outros, extrapolando os contextos de dança centrados na perspectiva cênica. O contexto!
Observar o ambiente da São Paulo e do Brasil de 1922 pela perspectiva de uma história social da dança foi por onde começamos. Foi com a consulta de documentos históricos que a reflexão sobre o espaço que danças de salão europeia, que manuais e aulas de dança e de etiqueta e que concursos de bom mocismo e de beleza ocupavam dentro do convívio de elites se amplificou. Analisando as fontes pudemos acompanhar na São Paulo da década de 1920 a organização de uma concepção de dança em torno de ideias higienistas e de civilidade. Uma dança almejada por elites e que era pautada pela crença na urbanidade, no cosmopolitismo e no progresso. Um entendimento de dança que atrela a compreensão de uma boa dança como uma dança que distingue seus fazedores dos demais mortais.
Por outro lado, nas notícia de jornais, notas policiais trazem a repressão de bailes populares, de danças de corpos negros, trabalhadores, imigrantes… um ambiente paralelo aos salões das elites mas que encontrou eco nas buscas modernistas pela realidade brasileira.
Nosso segundo foco de estudo foi a produção das artes visuais modernas, povoadas de representações de corpos dançantes em telas de artistas como Anitta Malfatti, Di Cavalcanti, Lasar Segall, entre outros da primeira geração modernista. E mais tardiamente, também abundavam corpos dançantes nas obras de Heitor dos Prazeres. Essa iconografia nos dá pistas de que outras danças - para além da das boas-moças, foram centrais no processo de modernização do Brasil. Da forma genérica com que se descreviam os batuques até a eleição do Samba como ritmo e música "cartão-postal" de um Brasil Moderno, foi importante mapear a capilaridade e importância de danças negras e periféricas na concepção moderna de um corpo brasileiro. Complexidade!
Dois historiadores foram convocados para nos auxiliar a compreender os traços plurais nas danças daquele tempo, e de todo século XX e até nas reverberações que atravessam nosso presente. Aqui de São Paulo, Rafael Galante e sua especialidade em etnomusicologia e história social da diáspora centro-africana, nos trouxe um aprofundamento na observação do Carnaval enquanto grande evento social e subversivo de nossa cultura, e no estudo do Samba enquanto matriz musical, corporal, convivial e documental da resistência das populações negras marginalizadas no sudeste do país. De Minas Gerais, situado em Goiânia, Rafael Guarato e sua agudeza de revisionismo crítico e pesquisa historiográfica em dança, nos provocou a caminhar para além de ideias de Brasilidade que projetam míticas e universalizações nos corpos, trazendo reflexões sobre a constante busca de uma identidade brasileira na dança que percorre artistas, criadores, instituições ao longo de todo século XX observando movimentos genuínos nessa inquietação mas também operações delimitativas e mercadológicas.
A Brasilidade, essa invenção que bebe em inspirações do modernismo brasileiro - como ideias antropofágicas, regionalistas e cosmopolitas - foi um assunto de abordagem recorrente. Quais tensões cercam essa ideia nas dinâmicas Brasil-exterior, Brasil-interior e sobretudo na organização de discursos que contornam um desejo de identidade nacional sintética?
Como inspirações nacionalistas e necessidades genuínas de auto-reconhecimento constroem um conceito Brasil que minimizando diferenças regionais, contextos sociais e dinâmicas culturais é capaz de organizar símbolos e representações que vão povoando ideias de dança do século XX com coloridos, exuberâncias, sinuosidades, brejeirismos e inacabamentos versáteis que talvez pareçam hoje elementos deslocados, no contexto decadente do "Brasil acima de tudo de 2022".
No encerramento do Ciclo, realizamos encontros com os nove artistas envolvidos no projeto Solos Brasileiros, comissionados pela Oficina Cultural Oswald de Andrade a convite de Marcus Moreno, para a criação de peças inéditas sobre as Bachianas Brasileiras de Villa Lobos. O olhar para os processos de criação e para os solos de Ivan Bernardelli, Luís Ferron, Eliana de Santana, Morena Nascimento, Beatriz Sano, Marina Muniz, Allyson Amaral, Angelo Madureira e Jorge Garcia trouxe apreciações e reflexões para o grupo que organizaram pensamentos em alguns dos textos que serão partilhados por aqui nas próximas semanas.
Olhar para os Solos Brasileiros no final desse percurso de estudos e refletir sobre a relevância da obra de Villa Lobos para a dança brasileira - ainda que haja pouca documentação e pouco estudo sobre isso - nos fez pensar sobre uma História da Dança Molecular, dispersamente documentada e narrada pulsam dissonância. Fechamos esse ciclo com o desejo de percorrer outras modernidades na dança brasileira para além dos cânones encontrados nos principais livros sobre dança brasileira existentes. Que bom que a Hemeroteca Nacional está digitalizada e nos oferece outras evidências históricas. Que bom que a pesquisa universitária não se dissolveu completamente, e que há cada vez mais monografias, dissertações e teses se debruçando sobre a memória das muitas danças do Brasil… Que falta faz uma ideia de arquivo - contemporâneo, flexível - para manejar o repertório e as discussões estéticas das danças que tem acontecido de forma autoral no nosso território. Que possamos atravessar nosso imenso desconhecimento com inquietações e curiosidades que não nos paralisem. E por isso nas próximas semanas, uma série de textos brotaram aqui no Portal MUD, trazendo a modernidade na dança brasileira para a discussão.
Atravessaram a jornada desse Núcleo de Estudos: Adriana Picarelli, Allyson Amaral, Ana Carolina Yamamoto, Andrea Ribeiro Paulino, Beatriz Sano, Camila Soares de Barros, Gabriel Fernandez Tolgyesi , Gilka Verana, Ivan Bernardelli, Jane de Oliveira, Luciana Bortoletto, Marcos Villas Boas, Maria Antonieta Villela Mendes, Rousejanny da Silva Ferreira, Suzana Bayona, Thiago Arruda Leite Negraxa e Uxa Xavier.
Veja mais sobre a série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança:
Texto 2 - https://portalmud.com.br/portal/ler/do-eu-ao-nos
Texto 3 - https://portalmud.com.br/portal/ler/bocaaaaa-um-solo-de-allyson-amaral
Texto 4 - https://portalmud.com.br/portal/ler/apreciacao-ou-digressao-sobre-o-solo-tudo-de-novo
Artista e professora de dança
Artista e professora de dança