LABORATÓRIO DA DANÇA

A dor é desobediente

Imagem: Fabiana Ribeiro | Sábado, 04 de Fevereiro de 2023 | por Cibele Ribeiro |

Quase três anos depois daquele março em que entramos num longo período de isolamento social, distanciamento, uso de máscaras, evitando abraços, beijos, afetos, apertos de mão, carinhos, toques, trocas de fluidos, copos e corpos compartilhados, como estamos nós? Eu queria conseguir ouvir de você o que a pandemia te deixou de marcas, anseios, medos, sonhos, gatilhos, desejos... Alguma mudança de hábito?

Daqui comecei milhares de atividades, mas nem todas dei continuidade. Em outras me encontrei e mantive. Há um ano comecei uma jornada de intensos cuidados por meio da fisioterapia, educação somática e da terapia corporal para lidar com uma dor no quadril. 

Tento recuperar o movimento parcialmente perdido e o próprio sentido da dança para mim, ao mesmo tempo. Senti que a dor criada nesse tempo se somava às outras. Como do tempo de corpo sentado nos trabalhos on line em frente ao computador, ou uma ainda mais antiga, da escrita da dissertação de mestrado. Quem sabe, retoma uma dor mais longínqua, aquela dor nas costas do tempo de gravidez e a reorganização do eixo em função do ventre gerador? Seriam, ainda reverberações das quedas laterais daquela coreografia que deixou hematomas, mas eu tinha que continuar pois era o que esperavam de mim? Afinal a estreia já estava aí.

Percebemos, nesse período de pandemia, a falta que fez um trabalho corporal mais vigoroso, a agonia dacontenção de movimentos nos espaços mínimos no confinamento, os temores políticos, a ansiedade com o trabalho, os pouco espaços profissionais e a imensa quantidade de trabalho que somos obrigados a realizar para viver de dança e de arte em meio a tudo isso é gigante. Olho para esses dois anos que passaram e lembro-me de Sísifo, condenado eternamente a empurrar uma enorme pedra morro acima, sempre fadada a cair e fazer o trabalho de Sísifo recomeçar. A dança, arte imaterial, é feita também de inúmeros recomeços. 

São muitas as pressões, desconfortos e reorganizações corporais que vivemos. Nem sempre o corpo se reorganiza de modo saudável, mas, às vezes, de modo a ser “eficiente” num mal sentido. Ele cumpre, como um bom funcionário, a expectativa que se tem dele. Mas deixa compensações, retrações, excessos de tônus de um lado e falta de outro, como um equilibrista exausto. Estou a falar de dor e de como ela se manifesta no corpo. Como escutar o que ela diz, sem, no entanto, sucumbir ao seu quebranto.

A dor é desobediente. Ela se manifesta como verdadeiros gritos do corpo nos obrigando a parar, a ceder, a escutar. O que está acontecendo aqui e agora? O que eu, de fato, preciso nesse momento? Como posso ser mais gentil comigo mesma? Foi me fazendo essas perguntas e escrevendo esse texto que um dia desses reencontrei Sofia (nome fictício*), uma ex-aluna, que me presenteou com esse testemunho que vão de encontro à essas reflexões.

Sofia nasceu com mielomeningocele, "que é o nome dado a uma falha no fechamento do tubo neural – estrutura que origina a medula e o cérebro no embrião. Essa falha faz com que a medula, as raízes nervosas e as meninges do bebê fiquem expostas". Passou por uma cirurgia com três dias de vida. O médico cirurgião foi objetivo em dizer que havia grande possibilidade de ela não desenvolver o movimento motor da cintura para baixo. Mas a cirurgia foi um sucesso e Sofia pode andar por volta dos 14 meses. Mas ela nunca pode se misturar com as outras crianças nas brincadeiras mais “levadas”. Nunca pode, por exemplo, brincar de escorregar no sabão, porque quando ela caía, sua dor era insuportável e ela perdia a força das pernas e os braços formigavam. 

Já adulta, Sofia se tornou estudante de dança da componente Consciência Corporal na escola de artes que eu leciono. Nela, utilizamos bastante a bola suíça, dentre outros materiais para estimular o corpo nas abordagens somáticas. Sofia tinha muito medo de cair e sofrer o impacto que a dor que sentiu a vida toda. Por vezes, nas demais aulas de dança, se desafiava mas ficava muito dolorida. Juntas investigamos como poderia fazer os movimentos de uma forma saudável e segura. Sofia nos conta: "pude entender o meu corpo, da raiz dos meus pés até a cabeça. Como era minha postura". Ela descobriu que devido a sua grande cicatriz lombar, fazia uma transferência de peso de forma equivocada, depositando excesso de forças do quadril na parte posterior da lombar, muito além do seu eixo, pois assim salvaguardava uma região sensível, que sentia como era mais confortável. Com as aulas, Sofia notou que que se depositasse os ossos de pés firmemente no chão, equilibrando sobre eles os quadris e deixando seu corpo fazer um movimento por vez, sentia um conforto muito grande, como se estivesse massageando seu corpo no andar. Ela nos conta que “na aula seguinte, utilizamos novamente a bola suíça, e cai sentada e não senti dores nenhuma! Neste dia, não pude me conter e as lágrimas caiam sobre meu rosto de alivio e felicidade.” Hoje, Sofia encontrou seu caminho e atua como terapeuta corporal.

Como diz Bell Hooks, “a cura é um ato de comunhão”. O conhecimento de si e do corpo promovido pela dança deve ser libertador e pode ser instrumento de cura e transformação das nossas vidas. Somos subjetividades cambiantes e a dança pode ser promotora de integrações. Essa é a dança na qual acredito.


*Sofia autorizou o texto e, na verdade, me incentivou a escrevê-lo para estimular outras pessoas a buscar pelos trabalhos integrativos.


Publicado por :



Cibele Ribeiro

Artista da dança independente



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