LABORATÓRIO DA DANÇA

Rua é um corpo?

Imagem: Ultrapássaros do Avoa Núcleo Artístico. Foto Felipe de Galisteo. | Terça, 19 de Abril de 2022 | por Luciana Bortoletto |

Como posso tocar a cidade? Uma rua por onde passo, alguma pela qual me sinta impelida a me aproximar e adentrar, como posso tocá-la? Afinal, como essa rua pela qual estou passando aqui neste exato momento, está me tocando? Que cantos ela entoa? Que vozes ela revela? Quais os discursos que fluem em suas entranhas? O que nela tensiona? Você aí: está escutando? Estamos presentes? O que estou fazendo aqui? Que memórias ela sussurra? Que cicatrizes carrega? Qual a história, quando surgiu, o que acontecia no mundo quando essa rua apareceu? Quem dá o nome que ela tem agora? Essa rua teve outros nomes antes? Quantos passos foram dados sobre ela desde o seu inicio? Quantos pés aqui e agora? A quantas andam esses pés que por aqui transitam? O que fazem? De onde vem? Para onde estão indo? Qual é a história contada pelos corpos a passeio? Os urgentes, os jogados e marginalizados, os “bem-vestidos”, os armados? Algum caminhante à deriva pode responder?

Solo de Rua de Luciana Bortoletto. Foto Gil Grossi

Dançar na rua. Saudade de dançar a rua. Dançar com ela, com as pessoas. Mas, em que momento voltar? Como será retornar aos lugares conhecidos, agora já transformados? Estarão esse lugares transtornados? E os novos lugares? Quero falar de sonho, de projetos, de possibilidades. Dependendo de quem pratica a rua, não vê nela espaço para o sonho. Quem se irrita com dança na rua? Há espaço para a dança em meio à guerra? Por qual ideal uma dança guerreia? Qual a batalha enfrentada por quem faz dueto com uma rua? Por que continuar nesse baile? Alguém se importa?

Esta conversa com você está mesmo solta, te convido às perguntas. É um pouco como a dança que faço de improviso calculado. O arcabouço teórico navega e não quer se impor. Talvez permaneçam as teorias mais ao fundo; pode ser que elas fiquem lá, sem que cheguem à superfície, pois o momento pede perguntas. Mas, então, um texto da Trisha Brown ressoa e serve para metaforizar o corpo sobre qual estou falando aqui:

“Essa ideia de corpo democrático consistia em se interessar por tudo aquilo que estava abandonado ou ignorado no corpo. Não somente utilizar partes do corpo raramente valorizadas, mas também direções não habituais para essas diferentes partes.” Trisha Brown[1]

Foto Luciana Bortoletto

E se esse corpo a que ela se refere for uma rua? É preciso coragem para invenções e amor pelas dobras, esquinas do corpo e da cidade. As margens e seus contornos, a pele, os músculos e os ossos. Seja onde for, esteja onde estiver, e se esse corpo democrático com suas partes ignoradas a serem valorizadas for o de uma rua por onde você anda todo dia? Como seria dançar com ela? Compreender a rua e a cidade como corpo é um modo de trazer uma perspectiva diferente para os nossos lugares de sempre. E se ao invés de percorrê-la diariamente, deixarmos que ela nos percorra; que nos atravesse e nos mostre seus buracos e partes quase inalcançáveis? Quem sabe a rua nos dê pistas? A rua protagonista. Rua-corifeu. Nós que dançamos em seu corpo, somos o coro. E vice-versa. Uma viagem! Que aventura... Quantos perigos, também! Ao mesmo tempo, esse coro de corpos em trânsito lembra o sangue que circula, com sua pulsação e calor próprios. Podem os corpos que trabalham na rua serem, quem sabe os músculos; o seu dinamismo? E a pele da rua pode ser suas texturas, sua superfície?

Quero falar de imaginação e dependendo de quem habita a rua, não vê nela espaço para isso. Há espaço para a dança em meio à guerra? Quais e quantas guerras cabem em uma rua qualquer da cidade?

Se não couber uma dança na rua, que a rua caiba na sua dança. Pois é na rua que inventamos desvios, pausas, pequenas corridas coletivas com estranhos, contemplações de edifícios e árvores, barulhos de helicóptero, uníssonos sincronizados com o verde e o vermelho de semáforos. Poiesis. Um sem-fim em fluxo a depender da rua e da hora do dia ou da noite.

A rua a qual me refiro pode ser uma com milhares de pedestres caminhando como em um formigueiro, como a Ladeira Porto Geral, a Rua São Bento, a Rua Quinze de Novembro, a rua Vinte e cinco de Março. Ruas ossudas, ruas magoadas (com más águas circulando por dentro), com água represada, terra envelopada por asfalto e piche. Rua respira? Os ossos são as partes que permanecem de um corpo escavado por arqueólogos. Ruas e ossos podem ter suas fraturas expostas encobertas por narrativas históricas e poeira. Um centro da cidade tem também as suas margens. As margens do centro e as narrativas concêntricas e coloniais nos confundem. Um sem-fim de contradições.

Luciana e Rui. Foto Gil Grossi

Estou a dançar na rua em minha imaginação. Estou com saudade. Cabe nesta dança espaço para o sonho? Este texto se abre em perguntas que percorrem o ...AVOA! Núcleo Artístico que, agora à deriva - desde o início da pandemia – se vê sem muitas perspectivas diante de tanto. No que diz respeito a estar junto ao corpo da cidade, deslizo sobre pedras, tateando com o corpo inteiro esse outro corpo, gigantesco, dantesco, alheio à minha viagem fundamentada em prosa, poesia, algumas teorias. Afinal, é preciso reaprender a ouvir a rua agora, antes de tocá-la novamente. Dá para mensurar a relevância de uma dança assim?

tarde de outono

raio de sol no meio da rua

– alguém desvia

(Luciana Bortoletto) 


Referências bibliográficas:

BARDET, Marie. A filosofia da dança: um encontro entre dança e filosofia. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2014.

“Mapa Percurso Geopoético”, publicação de autoria do ...AVOA! Núcleo Artístico, Lilian Amaral e colaboradores, resultante do Projeto “Entre-Espaços: Relações possíveis no encontro com a rua”, realizado através do 16º Programa Municipal de Fomento à Dança, anos 2014-2015. (Arquivo pessoal)


[1] Extraído do livro “A Filosofia da Dança. Um encontro entre dança e filosofia”. BARDET, Marie. Editora Martins Fontes, p. 107

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Luciana Bortoletto

Pesquisadora, educadora somática e coreógrafa



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