Tensionamentos e bifurcações como processo dramatúrgico na Improvisação

Fotos: Rebeca Galdino, Evento CORRERIA de improvisação em dança e música

Assim como é impossível transmutar em sua totalidade ação na dança para um texto, existe na improvisação uma impossibilidade enigmática em explicar como ocorre a criação  entre a composição em tempo real, o que se assimila nesse tempo criativo e o que esteticamente se cria com o outro.

A questão é que, a improvisação na dança contemporânea é um tema extremamente abrangente, disruptivo e tem como fundamento quebrar maneirismos, dogmas e convenções clássicas de dança. E nesse texto, gostaria de abrir um diálogo sobre como ocorre o processo dramatúrgico na improvisação.

Podemos dizer que a improvisação é um encontro experimental, que desde o séc. XX com os pioneiros da dança moderna como Rudolf Laban (1879-1958), Kurt Joss (1901-1979),

Mary Wigman (1886-1973) e Oskar Schlemmer (1888-1943) e grandes nomes da dança criaram meios guiados pela autopercepção para dançar além dos dogmas artísticos da época, construindo uma liberdade para a consciência corporal, espacial e coletiva.

Podemos dizer que existe nessa prática um fascínio pela maneira de como o corpo responde ao mesmo tempo que o mundo.

Mas como a improvisação e as suas possibilidades instiga o mistério e a curiosidade com o outro? E como essas possibilidades tensionam e bifurcam gestos, olhares e jogos cênicos?

Para ajudar nessa questão, faço referência  da tese escrita por Cleide Martins chamada de “Improvisação Dança Cognição, Os processos de comunicação no Corpo” pela PUC/SP, somos apresentados a improvisação como um processo cognitivo, o corpo em constante relação com o ambiente, agindo sobre ele e o ambiente, por sua vez, agindo sobre o corpo. Essa relação gera ações cognitivas que se auto-organizam e se adaptam continuamente em nosso corpo enquanto dançamos.

A ação na improvisação muda as coisas, em suas palavras “Nosso corpo em ação, gesta a comunicação com o mundo”. Em uma constante relação entre ação, percepção e cognição, o corpo comunica enquanto dança, as informações se concentram nesse ciclo interminável entre o que eu faço, o que você responde e onde conversamos. Esse diálogo gera símbolos, interpretações e reações que traçam trajetórias estéticas em cada improvisação.

Aproximações entre improvisação e dramaturgiaS:

A inviabilidade criativa que sustenta a improvisação, o peso/força, fluência, espaço e o tempo são coordenadas que guiam os experimentos. É possível dizer que essa trajetória criada naquele espaço-tempo possui uma dramaturgia própria? Mesmo que única e não repetível, entendemos a dramaturgia como uma espécie de composição.

Ao longo do séc.XX, a dança e o teatro se aproximam concomitantemente com as reflexões entre o que pode ser a dramaturgia, que seria mais que apenas representações de um texto ou um amontado de movimentos para uma coreografia. Na tese “Dramaturgia da improvisação: reflexões de um fazer composicional” da autora Mariane Araujo Vieira, escreve que:

“[…] a dramaturgia é aquilo que “diz respeito à composição de um drama que, por sua vez, diz respeito à construção de uma ação” e continua afirmando que este conceito “se relaciona à instância da composição coreográfica que cuida das relações que se estabelecem durante o processo de construção e organização da cena, sendo que suas propriedades constitutivas se encontram inseparavelmente conectadas” (Vieira,2021, p.97).

E complementa: “A composição em dança, assim, atravessa o visível para perceber o invisível (para além da forma), o sentido, a pulsão, as forças em fluxo de energia” (Vieira, 2021, p. 98), assim, podemos dizer que a dramaturgia é composta pela sua pluralidade, como descreve a autora da tese, o conceito dramaturgias se aproxima do que o teatro no Séc.XX chama de encenação, se tornando a organização e construção da cena, dança, corpo, olhar, presença e entre outros elementos que constituem toda a obra.

Por outro lado, a improvisação organiza e constrói gestos, em uma espécie de narrativa cinética compartilhada entre o espaço e o outro. Essa composição em tempo real se relaciona com escolhas, decisões e recortes que acontecem involuntariamente durante a improvisação. As decisões são formas de organizar e construir esteticamente uma dança em tempo real, cujo os corpos expressam o tempo inteiro as suas potências, estamos falando de uma estética performativa, que revela para além dos estilos pessoais de dança, mas sim seus desejos, pulsões e éticas de criação.

As escolhas se entrelaçam mutuamente com a improvisação coletiva em tempo real, construindo um diálogo, estabelecendo jogos cênicos. Criando um fascínio incerto do que virá a seguir.

Experimentos na improvisação:

A improvisação acontece no encontro, na fusão, conflito, dúvida e anseio em criar ações e reações, a adaptabilidade em relação ao gesto do outro com o espaço, retroalimenta um espaço dinâmico, caótico, inconsistente  e extremamente profundo. Os jogos cênicos criados em tempo real alimentam o “drama” entre os olhares, toques e qualidades de movimento.

A curiosidade e o enigma do que será “respondido” em cada gesto, retroalimenta um sistema improvisacional, escutar e perceber, são conceitos que se tornam fundamentais para a experimentação.

A questão central é que a improvisação não é apenas um “treinamento de escuta e capacidade expressiva do corpo no espaço”, mas uma hipersensibilidade poética, política e social de se auto-organizar, construindo e rompendo as suas próprias leis. A radicalidade da improvisação nos coloca em reflexão os processos engessados de gestualidade, movimentos, dogmas e composição que realizamos tanto em nível muscular quanto o olhar poético para construção de novas cenas.

Os tensionamentos e bifurcações construídas pela composição em tempo real, colocam em voga aquilo que repetimos sem perceber, um braço que sempre me leva ao chão, uma qualidade de movimento que protagoniza uma ação. Entre outras formas que limitam a nossa capacidade técnica e artística.

A dramaturgia na improvisação é uma prática fina, sensível e possui as suas próprias dinâmicas, companhias que possuem trabalhos de improvisação ou eventos de encontros artísticos improvisacionais tem em sua responsabilidade saber ler, assimilar e provocar tensionamentos cada vez mais potentes.

Elevando a noção de improvisação não apenas para quem dança, mas por todos que compõem a encenação, construindo em conjunto um acontecimento em tempo real, unindo todos os agentes para uma ação colaborativa (Mas isso vou explicar melhor no próximo texto).

Há nesse encontro uma construção dramatúrgica que podemos criar e sonhar utopias, políticas, paralelos e relações com a linguagem da dança que ainda desconhecemos. Misturar, combinar, organizar, construir e complicar são palavras que se encaixam nessa composição dramatúrgica na improvisação.

Gabriel Paleari

Gabriel Paleari

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Copywriter, colunista de dança, sócio da N Produções Culturais Ltda e fundador da Estranha Companhia de Dança-teatro. Bacharel em Artes Cênicas pela UEL, atua nas áreas de criação artística, produção cultural e marketing digital. Desenvolve desde 2014  sua pesquisa ‘Notas Nômades: Cartografia do CsO em Antonin Artaud’’ que investiga o conceito do CsO sob a perspectiva biográfica de Artaud, a qual obteve publicação do artigo no dossiê Antonin Artaud na revista Ephemera. Com seu trabalho artístico fez parte dos festivais como: FILO, Building Bridge Art Exchange, Kinoarte,DANCEP (Curitiba-PR), Festival de Inverno da Universidade São João Del Rei-MG, Festival de dança de Londrina, e a_ponte do Itaú Cultural (SP) . É colunista de dança do PORTAL MUD (Museu Virtual da dança). Em 2023, foi em nome da Estranha como representante sul do país para o MIC- Mercado de Indústrias Criativas do Brasil, e tem como desejo expandir o mercado independente nacional com obras experimentais e de cunho de pesquisa.