Desvendando a nebulosa a partir de “Da pergunta à cena: Perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa” de Mateus Fávero

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O crescimento dos cursos de graduação e Pós-Graduação em Artes, tais como Dança, Teatro, Artes Cênicas, Artes Visuais, Música e Cinema, tem impulsionado discussões relevantes sobre as intersecções entre a criação artística e a produção acadêmica. A dicotomia tradicional entre o fazer artístico e o pesquisar científico tem, progressivamente, se mostrado insuficiente para abarcar a complexidade dos processos criativos e de criação em Artes. Hoje, há uma crescente mobilização de artistas-pesquisadores, pessoas pesquisadoras, artistas que transitam entre esses campos, operando numa zona liminar, por vezes imprecisa, mas profundamente fértil.

Essa zona, que a nomeio como “nebulosa” não deve ser interpretada como um território desorganizado. Pelo contrário! Ao tomarmos de empréstimo o conceito da Física, as nebulosas são compostas por poeira e gás interestelar, e é justamente a partir delas que se formam estrelas, planetas, galáxias e por conseguinte a vida. Há, portanto, uma potência criadora no que não é fixo, no que ainda não se cristalizou. Da mesma forma, no pesquisar a partir da prática artística , essa instabilidade é muitas vezes a condição para o surgimento de novas epistemologias, estéticas e metodologias.

É nesse contexto que o livro “Da pergunta à cena: perspectivas metodológicas para a prática teatral”, do artista-pesquisador brasileiro Mateus Fávaro, se insere. Trata-se de uma obra que se propõe não apenas a discutir as práticas teatrais a partir de um olhar acadêmico e também artístico, mas a evidenciar como a própria prática pode se constituir como espaço metodológico. Em outras palavras, Fávaro não parte de um modelo exterior para analisar o teatro; ele parte do próprio fazer teatral para construir suas proposições metodológicas.

Ao invés de nos apresentar um método, uma receita para prática como pesquisa, o autor propõe caminhos, possibilidades, trajetos. Diferencia com precisão “método” de “metodologia”, não como exercício terminológico, mas como ponto de partida para uma compreensão mais densa da pesquisa em artes. A metodologia, por sua vez, nasce da experiência, do gesto que investiga enquanto cria, da dúvida que se transforma em estrutura.

Polêmico? Talvez. Fávaro afirma que a pesquisa não é propriedade exclusiva da academia. Para muitos artistas, isso parece óbvio. Mas sustentar esse posicionamento — que é, sim, político — em espaços onde os moldes da pesquisa foram engessados, é uma tarefa árdua. Em um campo acadêmico muitas vezes ainda apegado a critérios positivistas ou excessivamente normativos, sustentar que o corpo que dança, a voz que entoa ou o gesto que performa são também formas de produzir conhecimento e reivindicar um lugar para outras epistemologias — sensíveis, corporais, híbridas. Mas com maestria, o livro também revela a importância dos saberes acadêmicos aplicados ao fazer artístico. Afinal, “a teoria é tudo aquilo que ajuda a ver” (Fávaro, 2025, p. 40). A prática como pesquisa se transforma em ma nebulosa criadora, envolvendo nós leitoras, leitores, leitors  interessados nesta práxis.

O caminho da criação e da pesquisa em arte não é tangencial. Ele é curvilíneo, bifurcado, cheio de voltas e desvios. Estar nesse lugar como artista-pesquisador(a/e) gera ansiedade, insegurança, e até auto sabotagem. Mas, o livro nos abraça e acalma, conclamando que é justamente a dúvida que inaugura o processo. É ela que nos faz inventar caminhos, atalhos e novas perspectivas — e, assim, gerar arte e conhecimento.

O caminho, portanto, não é tangencial. Não há uma rota única que conduza do problema ao resultado. O percurso é curvo, bifurcado, ramificado, labiríntico. Habitar esse espaço exige coragem e sensibilidade. E é justamente essa coragem que Fávaro convoca — não apenas ao artista, mas também à instituição, aos programas de Pós-Graduação, aos órgãos de fomento. Pois é nesse entrelaçamento entre fazer e pensar, entre criar e refletir, que reside a potência da pesquisa em arte.

“Da pergunta à cena: Perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa”é, assim, mais que um livro: é uma provocação teórica e política. Ele contribui para uma necessária revisão dos paradigmas acadêmicos, convidando-nos a pensar a pesquisa não como terreno exclusivo das ciências duras, mas como espaço aberto ao sensível, ao estético, ao performático. E, sobretudo, reafirma que a arte, em sua potência criadora e questionadora, tem muito a dizer — e a ensinar — ao campo do conhecimento.

Particularmente, gostaria de ter encontrado esse livro lá pelos idos de 2020, quando o medo, a dúvida e a insegurança pairavam sobre mim — uma iniciante na pesquisa e na criação em Dança. Mas nunca é tarde, não é mesmo? Agora posso, enfim, aposentar meu amarelado e amarrotado “Como se faz uma tese” (2020) do filósofo italiano Umberto Eco, e dar lugar ou as mãos a um novo e potente companheiro, escrito por um de nós.

 

FÁVERO, Mateus. Da pergunta à cena: Perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa. São Paulo: Annablume, 2025.

Nailanita Prette

Nailanita Prette

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Mestre em Artes – linha de pesquisa Artes da Cena, pela UFMG; licenciada e bacharel em Dança pela UFV; técnica em Dança pela ETAM Santa Cecília. Artista das Artes do Corpo com ênfase em Dança Contemporânea e Performance, com trabalhos autorais e com artistas parceiros. Professora de Dança e Artes na rede pública de ensino e no curso técnico de Artes Visuais, ambos da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Pesquisadora em Dança e Teatro Físico com interesse nas temáticas: Analise do Movimento, Técnicas Corporais, Poética do Corpo, Processo Criativo em Dança, Improvisação em Dança e Modos de Mover Contemporâneos. Se interessa na teorização da Dança a partir da prática, do corpo em movimento, uma das vertentes de trabalho que vem se arriscando é a Critica em Dança.