
Um dos momentos mais icônicos da teledramaturgia nacional foi a frase proclamada por Bebel, personagem da atriz Camila Pitanga a Olavo (Wagner Moura) “Que boa ideia este casamento primaveril em pleno outono”, em uma das cenas da telenovela “Paraíso Tropical”, exibida no ano de 2007 pela TV Globo. Por sua vez, a obra coreográfica “La ville dansée” (A cidade dançante) apresentou-se com esse tom, evocando os ruídos e sentidos de um vento outonal em plena primavera francesa.
No dia 5 de junho de 2025 na apaixonante cidade de Paris, tive a oportunidade de prestigiar o espetáculo “La ville dansée”, por indicação de um amigo brasileiro – bailarino que vive e trabalha em Paris. Em pleno almoço da primavera européia, em um dia atípico, gelado que ao invés de anunciar o estimado verão europeu rememorou o temido e dolorido inverno. Mas assim como a filosofia chinesa do Yin e Yangnos lembra que as forças opostas podem ser complementares, o vento gelado que nos aflora as dores do frio também tem o poder de dissipar as nuvens, permitindo que o calor do sol se instale. E foram os bons ventos que abriram a passagem para “La ville dansée”, obra coreográfica colaborativa de Benjamin Millepied (França) junto com Dimitri Chamblas (França), Emmanuelle Huynh (França), Jamar Roberts (Estados Unidos da América) e Pam Tanowitz (Estados Unidos da América), dançada por 15 bailarinos/as/es.
O projeto foi estreado em 2024 e, para a temporada de 2025 foi reconfigurado a partir da composição de uma fabulação inspirada por inquietações sobre as possíveis – e já concretas – transformações tecnológicas e seus impactos nos afetos, na vida e no corpo, tanto no presente quanto no futuro. A obra artística de base para a criação foi o filme “Koyaanisqatsi” (1982) dirigido pelo cineasta estadunidense Godfrey Reggio, cuja trilha sonora de Philip Glass foi mantida em “La ville dansée”. Para a composição coreográfica, BenjaminMillepied coordenou um ciclo de palestras com pesquisadores/as/es e intelectuais da temática, para alimentar os processos de criação. Este trabalho integra o Paris Dance Project, uma iniciativa que reúne artistas e sociedade civil com o intuito de promover debates e ações a partir da dança, unindo os trabalhos de artistas já consagrados e os que estão no caminho, fomentando a formação de novos profissionais. Ademais, acrescento que a proposta também contempla e condiciona a formação de público em dança, uma vez que apresentações e ensaios não se restringem à sala de aula, ao laboratório de criação, ou aos palcos de Óperas, mas ocupam também ruas, praças e parques.
Dito isso, a primeira coreopolítica que me saltou aos olhos foi a do público: a maleabilidade e a familiaridade com a fruição da/em arte. Coreopolítica, por sua vez, é umconceito em dança desenvolvido pelo curador, crítico e teórico Dr. André Lepecki (2017), que relaciona movimento, corpo e política. Em termos gerais, a coreografia é a forma estruturada e organizada dos movimentos no espaço – ou seja, é a composição (uma das) linguagem em dança. O termo é composto pela união das palavras e conceitos de coreografia e política. Todavia, ao defender que todas as instâncias do mover acarretam em dispositivos políticos, utilizo a nomenclatura desenvolvida por Lepecki (2017). Por conseguinte, o desenho coreográfico dos transeuntes que se transformaram em plateia foi o primeiro ato de “La ville dansée”. Anteriormente, cada pessoa caminhava com sua trajetória individualizada, traçando rotas particulares pelo Parvis de La Défense Puteaux. Quando os ventos chegaram, foram se aglutinando em uma única estrutura, criando uma comunidade de receptores, fruidores e criadores em dança. A média de público foi de mil pessoas.
A partir da ideia de construção comunitária – iniciada no ato coreográfico por parte de pessoas coreógrafas francesas e estadunidenses, e finalizada na coro da plateia -, cada uma dessas marcas revelou-se no corpo que dança, compondo assim a coreopolítica de “La ville dansée”.
Ainda para Lepecki (2017), a função da coreografia é pensar o/a/e sujeito em termos de corpo. Aqui, entende-se a/e/o sujeito conforme os pressupostos do filósofo pós-estruturalista Michel Foucault (2014), segundo os quais o sujeito é uma produção histórica, social e cultural, formada nas e pelas relações de poder.
Mas uma obra coreográfica pode ser caracterizada como uma instância de poder? Para corporificar uma coreografia, as pessoas dançantes se disciplinam para realizar os movimentos propostos, dialogar com os corpos que dançam junto e, neste caso, moldar-se com os corpos da plateia. Quando se dança em um espaço concebido originalmente para o ir e vir – um espaço de passagem -, e um acontecimento exige que o trânsito cesse, que o foco mude, os corpos em dança cedem a esse poder. Particularmente, não conheço cada uma das pessoas bailarinas, mas várias identidades falaram durante o dançar. Cada corpo produziu o paradoxo de uma coreopolítica singular – e, ao mesmo tempo, plural.
Particularmente, não conheço cada uma das pessoas bailarinas, mas várias identidades se manifestaram durante a dança. Cada corpo produziu o paradoxo de uma coreopolítica singular — e, ao mesmo tempo, plural.
“La ville dansée” propõe que pensemos em como os acontecimentos do presente, mediados por dispositivos tecnológicos, podem influenciar nossas ações no futuro. O filósofo indígena brasileiro Ailton Krenak (2022, p. 70-71) nos aponta: “Temos que reflorestar o nosso imaginário e, assim, quem sabe, a gente consiga se aproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência de vida, em vez de ficarmos repetindo os gregos e os troianos” — ou, ainda, de repetirmos as ações dos colonizadores. Nesse sentido, os ventos de “La ville dansée” nos convida a imaginar outras formas de existência no espaço urbano, nas quais o corpo em movimento, a tecnologia e a memória coletiva possam se entrelaçar na construção de futuros mais sensíveis, sustentáveis e descolonizados. É um chamado à criação de novas narrativas que rompam com a lógica da repetição e nos impulsionem a fabular cidades onde a dança, a escuta e o sonho sejam práticas políticas de reinvenção do viver.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
LEPECKI, André. Exaurir a dança: performance e a política do movimento. Tradução: Pablo Assumpção Barros Costa. 1. ed. – São Paulo: Annablume, 2017.
Paris Dance Project. La Ville Dansée. Disponível em:<https://www.parisdanceproject.org/projet/la-ville-dansee-2025/>Acesso em 02/07/2025.