Tem quem olhe torto pro atrevimento de se viver daquilo que a gente gosta. Mas arte também é trabalho.
O tabu que dificulta falar de dinheiro, às vezes dificulta a gente discutir, desde cedo, trabalho, salário, e até reconhecimento. Existe uma impressão — bem errada —, de que a arte é uma coisa que está além de algo tão mundano como o dinheiro, mas a gente sabe: trabalho é trabalho, e todo mundo tem contas pra pagar.
Trabalhar com arte é complicado. Não porque seja ruim, difícil, desgastante, ou mais trabalhoso que alguma outra profissão. Mas porque tem um estigma bem cansado de que o trabalho é aquilo que a gente faz obrigado, contra a vontade, desgostoso, infeliz.
Quando a gente escolhe se dedicar a uma área que a gente gosta, a fazer um trabalho que realiza também pessoalmente, parece que a gente quebra essa pacto de insatisfação coletiva. O resultado é que muita gente vê o que a gente faz como hobby, como diversão, como aquele prazer escondido que deveria ser guardado só pro fim de semana prolongado e pras férias. Como se tivesse dia certo pra ser feliz…
Daí vêm as tantas imagens injustas de gente das artes como gente preguiçosa, gente vagabunda. São aqueles que se atrevem a fazer o que gostam, e que arriscam transformar isso em um meio de vida.
Arriscam mesmo. A nossa área não é nada simples. Inconstante, sempre com recursos cortados, pouco reconhecida e frequentemente mal paga. Tudo isso entra na conta do que é trabalho. As especificidades dos horários, que normalmente escorregam por cima das possibilidades mais comuns de lazer e de descanso, também não ajudam.
A gente faz o que gosta, mas isso não muda o tempo, o investimento, a formação, e a dedicação empregadas. Não é mais rápido, nem menos trabalhoso do que seria fazer um trabalho a contragosto. Mas no imaginário coletivo, às vezes parece que tem um imposto aplicado sobre a realização pessoal, que insiste em desvalorizar o que a gente faz.
Daí as percepções complicadas. De que a arte precisa ser de graça, de que a contribuição com o trabalho do artista seja uma forma de demonstração solidária, etc. Na verdade, parece que a gente nunca superou completamente a lógica dos mecenas — do indivíduo ou instituição que “muito generosamente”, mas apenas por sua boa vontade, decide apoiar as artes.
O que esse ano de isolamento ajudou a mostrar — pro mundo — é que a arte não é aquela coisa ali no canto esperando caridade. Ela não é só aquilo que precisa receber ajuda. Pelo contrário, ela tem sido a ajuda e o apoio de tantas pessoas, enfrentando tempos difíceis.
E essa arte toda têm sido feita em condições ainda mais difíceis, frequentemente ainda mais precárias, e enfrentando ainda mais riscos. Fica uma esperança de que, em tempos melhores, o reconhecimento também venha, e a gente consiga falar mais abertamente sobre o trabalho com arte, e as questões financeiras que precisam acompanhar qualquer discussão sobre trabalho.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.
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