Cristian Duarte: O Coreógrafo que Coreografa Corpos, Espaços e Ideias

Foto: Mayra Azzi

Nesse bate-papo Cristian Duarte reflete sua atuação no cinema e a potência da dança como linguagem viva e coletiva, e sua imersão no universo de Ney Matogrosso para o filme Homem com H.

Cristian Duarte tem uma trajetória marcada por uma constante reinvenção de formas e contextos de criação, ele transita entre palcos, coletivos, instituições culturais e agora, também, o cinema. Ao longo de sua carreira, sua visão sobre corpo, movimento e presença foi profundamente influenciada pelas transformações sociais, tecnológicas e estéticas do nosso tempo.

Nesta conversa, Cristian fala sobre como o avanço das dinâmicas digitais alterou a percepção coletiva de tempo e atenção, e os desafios que isso impõe às artes cênicas. Ele também compartilha aprendizados de experiências colaborativas em espaços como o APT?, DESABA, LOTE e Z0NA — onde a experimentação, o afeto e o processo criativo são mais importantes que o produto final. A residência na Casa do Povo, que já dura 13 anos, é apontada como um campo fértil de porosidade, onde arquitetura e gestão se tornam matéria coreográfica.

Outro ponto alto da entrevista é o relato sobre sua estreia como coreógrafo no cinema, ao colaborar com o diretor Esmir Filho no filme Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso. Cristian revela como traduziu a presença magnética de Ney para o corpo do ator Jesuíta Barbosa, abordando o trabalho a partir da ideia de tônus, fáscia e da relação do corpo com o espaço. Ele também comenta sobre a complexidade dos bastidores do set, a delicadeza dos figurinos como extensão do corpo e a potência da imitação como ferramenta de estudo e criação.

Entre percepções refinadas sobre a presença cênica e uma escuta generosa ao tempo das coisas, Cristian Duarte nos convida a repensar o lugar da arte na atualidade — e, principalmente, o que ainda é possível construir quando o corpo insiste em ser território de resistência, sensibilidade e transformação.

Bastidor do filme Homem com H: Cristian ao centro, com o ator Jesuíta Barbosa e o diretor Esmir Filho. Foto: Marina Vancini.

Você tem mais de duas décadas de atuação na dança contemporânea. O que mais se transformou na sua visão de corpo e movimento ao longo desses anos?

Não foi apenas minha visão de corpo e movimento que mudou. A cognição de todo mundo com a “evolução” digital é completamente outra. Vivemos imersos nas dinâmicas virtuais, onde imperam a opinião, a ilusão de comunidade, uma noção de tempo ultrafragmentado. Contemplação virou sinônimo de lentidão, de tédio. Para quem trabalha com artes cênicas, o desafio é como conversar com pessoas-algoritmos cuja percepção é guiada por segundos, em que uma semana parece equivaler a uma década.

 

Sua trajetória é marcada pela criação de contextos coletivos como o APT?, DESABA, LOTE e Z0NA. O que esses espaços ensinaram a você sobre colaboração e experimentação em dança?

Me ensinaram — e ainda ensinam — a valorizar e lutar por redes de afeto, orientadas pela saúde coletiva e não apenas individual. Na esfera da experimentação, ainda insisto em elevar os processos, a artesania, as experiências laboratoriais ao patamar de fim, tensionando e adiando ao máximo o que se entende por produto no campo artístico, em especial nas artes vivas.

 

Como sua residência na Casa do Povo tem influenciado ou expandido seu modo de pensar e praticar coreografia?

A Casa do Povo é um exercício constante de porosidade. Sua arquitetura, sua gestão e as ações que são inventadas ali dentro são matérias que convocam nossa atenção para pensar relações — entre pessoas, espaços, tempos e ideias. Ao longo de 13 anos convivendo e trabalhando ali, vivi muitas Casas, e percebo que não é apenas a Casa que influencia meu trabalho, meu pensamento, minhas coreografias. Minha atuação por lá também influencia o que ela é, o que ela pode ser, o que ela vai sendo. Vale apontar que percebo minha atuação lá como uma via de mão dupla, porque ela — a Casa — mesmo envolta na pele de uma instituição, consegue permitir e estimular que isso aconteça.

 

Como surgiu o convite para coreografar o filme Homem com H, e o que te motivou a aceitar esse desafio?

O diretor Esmir e eu acompanhamos mutuamente nossos trabalhos. Houve uma tentativa de trabalharmos juntos quando ele realizou a série Boca a Boca, em 2020. Por conflitos de agenda, não conseguimos. Em 2024, chegou o convite em um momento em que eu já me encontrava próximo do universo dos Secos & Molhados, através de outra produção audiovisual que, infelizmente, não avançou. Então, quando recebi o contato do Esmir, teve um gosto daquelas coisas que chamamos de karma, ou simplesmente — tinha de acontecer!

O universo criativo, ético e estético do Ney é uma referência para mim, sempre me inspirou, e sempre senti suas performances como algo que eu desejava experimentar na própria pele, tocar. Tem coisas na vida que, por alguma razão, a gente sente como familiares. O Ney bate assim pra mim. Como uma força que te empodera. Um prato cheio para quem gosta de estudar e pensar sobre presença e suas variedades — qualidade que considero imprescindível para quem trabalha na esfera cênica.

 

Ney Matogrosso é uma figura performática e muito particular. Como foi o processo de traduzir o corpo e a presença dele para o corpo de Jesuíta Barbosa?

Entrei conversando com o Esmir e com o Jesuíta sobre a tonalidade do Ney. Refiro-me ao tônus muscular — ou ainda, a um “tecido” chamado Ney. Já faz algum tempo que tenho a fáscia — o maior órgão sensorial do corpo humano — como referência para abordar qualidades no corpo e no movimento.

Nos ensaios com o Jesuíta, direcionava nossa atenção para o tônus e as relações com a sensação do peso e do espaço ao redor, como pontos importantes a considerar sempre nas atuações das performances musicais, para que ganhassem projeção sem perder a sensação de si próprio. Disse algumas vezes durante o processo que o Ney projeta bastante, mas não joga tudo para fora de si. Há sempre um tanto de energia, de peso, de vetores que ficam com ele. Na minha percepção, é essa capacidade de projetar para fora e para dentro ao mesmo tempo que confere uma qualidade, um peso, uma presença que poderíamos chamar de “Ney”.

 

Quais foram os principais desafios em coreografar para o cinema, especialmente em uma narrativa biográfica?

Cinema é outra lógica. No meu caso, vivi um pouco das duas instâncias. Houve um período de ensaios em estúdios e salas, mais próximo da minha prática na dança. O maior desafio para mim foi mesmo estar no set de filmagem e atento aos enquadramentos e aos vários detalhes em jogo. É necessária uma atenção absurda às comunicações que acontecem a todo momento entre o diretor (@esmirfilho), a assistente de direção (@kityfeo) e a direção de fotografia (@azulserra). A cada conversa entre eles, coisas mudavam ou eram colocadas com mais precisão.

Além disso, os figurinos, a caracterização e a maquiagem — no caso do Ney — são elementos que qualificam o gesto e a atuação com bastante força. São como extensões do corpo, então foi preciso constante atualização sobre o que foi trabalhado e o que era esculpido junto no set.

Copiar o Ney nunca foi uma premissa. Sempre tratamos o Ney como referência para que o Jesuíta pudesse encontrar o Ney dele. Ainda assim, nunca desconsidero a possibilidade de imitar alguém. Quando somos crianças, crescemos imitando, e aos poucos vamos encontrando nossa personalidade, nossos próprios sabores, tomando mais consciência e propriedade do que nos torna singulares. Acredito que imitar seja uma etapa de um estudo — especialmente quando o objeto em foco é cheio de camadas e complexidade. Gosto de aproximar a imitação da antropofagia: comer, digerir e soltar algo que carrega a potência do murmúrio que nos torna únicos.

 

Houve algum momento marcante durante os ensaios ou gravações que te fez perceber que o trabalho estava encontrando seu tom?

Houve alguns. Mas acho que o mais marcante foi quando consegui enxergar que já não havia mais diferença entre o Jesuíta dos bastidores e o da cena.

Carol Contri

Carol Contri

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Fundadora e Diretora Artística do Espaço Co.Art e da Cia Co.Art de Dança Contemporânea, formada em ballet clássico pelas metodologias Vaganova e Cubana e em Dança Contemporânea. Cursou Metodologia Vaganova pela Escola do Teatro Bolshoi Brasil e docência em dança contemporânea pela EDASP – Escola do Theatro Municipal de São Paulo. Jornalista, licenciada em Letras, Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Anhembi Morumbi e Especialista Letras – Processos de Ensino e Aprendizagem pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.  Professora de ballet clássico e dança contemporânea.