MURAL DA DANÇA

Bate-Papo com Sônia Mota

Segunda, 22 de Janeiro de 2024 | por Carol Contri |

Harmonia em Movimento: A Dança Intemporal e o Método 'Arte da Presença'

Sônia Mota, uma figura ímpar na dança, desvela sua jornada artística por meio do método "Arte da Presença". Esta alquimia de movimento, estudada ao longo de décadas, transcende a forma convencional, desafiando a linearidade do tempo. Sua abordagem única incorpora cinco linhas mestras e três complementares, explorando a individualidade do movimento. Influências como Taiji Qi Gong e Danças Haikunianas enriquecem sua metodologia, conectando corpo, mente e espírito.

Ao aplicar a "Arte da Presença" em aulas, Sônia prioriza rituais, projeções do imaginário e a valorização do erro. Seu ensino desafia o convencional, promovendo descontração e cumplicidade entre alunos e professores. Entrelaçando-se com as nuances da "Arte da Presença", ela nos convida a uma jornada além da forma física, guiada por cinco linhas mestras e três linhas complementares que desdobram a dança como um diálogo íntimo entre gravidade, eixos, ancestralidade, polaridades e o ato de chegar em si. Esses princípios, mais do que moldar corpos, instigam uma dança que emerge como uma expressão singular da individualidade, desafiando as convenções tradicionais.

Ao refletir sobre sua própria evolução como bailarina, Sônia Mota revela uma dança que se torna mais íntima, mais essencial. A fusão de sua experiência biográfica nas criações coreográficas, marcada pela nostalgia e pela expressão autêntica, destaca a singularidade de sua trajetória como artista da dança.  Através dos anos, Sônia Mota permanece uma aluna e uma professora, uma artista que se aprende e ensina incessantemente. Confira mais nesse bate-papo inspirador com Sônia Mota:


Pode nos falar mais sobre o método de dança "Arte da Presença" desenvolvido por você?

Arte da Presença é um sistema de treinamento do corpo criado por mim, a partir de questionamentos que eu fazia na década de 70 referentes a algumas posturas das técnicas clássica e moderna da dança.  O processo de criação do método passou por três longas e distintas fases antes de se tornar um método. Foram 4 anos de Rompimento, 8 anos de Reconstrução e 7 anos de Restituição. Para romper foi preciso instaurar o caos na ordem estabelecida, desaprender o aprendido. Para reconstruir foi preciso reorganizar o caos, criar texturas de movimentos, recolocar tudo de novo nos seus devidos lugares, modificados. Para restituir foi preciso reduzir, sintetizar o material redescoberto, reabsorvê-lo e dar o tempo natural para a sua nova manifestação.


Como essa abordagem influencia sua visão sobre o ensino da dança?

O método da Arte da Presença sem ser meditação, acentua a maneira individual de dançar do dançarino; sem ser uma técnica da improvisação, improvisa com as regras do dançar. Essa abordagem é desde os anos 70, a linha de conduta que mais acredito ser necessária no ensino da dança. Ela respeita mais os conceitos de dinâmica, textura e individualidade do movimento do que os conceitos da forma em si. Lida com o confronto de duas diferentes realidades: a realidade constante dos valores sociais e culturais da sociedade e a realidade imprevisível e indomada do ser humano que a habita.


Quais são os princípios fundamentais que norteiam o método "Arte da Presença"?

Os princípios que norteiam a Arte da Presença se apresentam através de 5 Linhas Mestras e 3 Linhas Complementares. Sendo as linhas mestras: 1- ode a gravidade; 2-eixo duplo; 3-costas ancestrais; 4-dinâmicas entre polaridades; 5-chegar em si. E as linhas complementares: 1-fisicalidade; 2-espiritualidade; 3-qualidade do movimento.


Como esses princípios se diferenciam de abordagens mais tradicionais na dança?

Em vez de criar uma linguagem, me preocupei mais em transformar, restaurar, readaptar, reorganizar os códigos clássicos e modernos já existentes na dança e torná-los acessível para todos os tipos de corpos, sejam eles magros ou gordos, feios ou bonitos, secos ou húmidos, jovens ou velhos. Talvez a Arte da Presença se diferencie das abordagens mais tradicionais de dança, porque insiste mais no ser a dança do que fazer a dança, ou pesquisar a dança ou estudar a dança. Outra abordagem, das várias que aplico, é tirar a seriedade dos treinos de dança. É brincando que o corpo se descontrai, perde os medos e as vergonhas, se abre e esquece que vai dançar. Nada como esquecer o objetivo e se concentrar na ação. É preciso incentivar sensações de não compromisso, de relaxamento, de descontração e qualidades “profanas” aos movimentos de dança. Dessa forma instaura-se um descompromisso contagiante no corpo, que gera uma disponibilidade maior pelo aprender, que desmancha a seriedade profissional e afugenta o medo amador, criando uma sensação de cumplicidade entre alunos e professores. Na brincadeira se esboça o futuro.


Quais foram as principais influências e experiências que a inspiraram a criar o método "Arte da Presença"? 

Além dos meus próprios questionamento sobre as técnicas já existentes, foram as ideias e conceitos de Alexander Rowen, Ana Rolf, Fritjof Capra e Ken Dichtwald que me inspiraram a seguir o meu pensamento sobre a dança. A técnica se desenvolveu também através das dicas amorosas de grandes amigos, da sua empatia pela filosofia Zen e do seu profundo desejo de integrar corpo, mente e espírito no ato de dançar.


Há outros métodos ou filosofias que também influenciaram sua abordagem?

Sim. No ano 2000, comecei a me aprofundar no conhecimento do Taiji Qi Gong, antigo sistema de cura chinesa, que nos ensina como adquirir uma calma interior, através de uma sequência de 18 exercícios, especialmente organizados, para conectar de forma sutil as forças vitais do corpo, do espírito e da emoção. A sequência fluída e lenta dos exercícios conectada à respiração regular e calma proporciona concentração e esta, por sua vez, ameniza a mente, o corpo e o espírito. O estudo e prática profundos dessa técnica, influiu na metodologia da Arte da Presença reduzindo a velocidade dos movimentos sem tirar o seu vigor e fez também com que esse método se tornasse a origem de uma nova dança na minha carreira. As denominei, Danças Qi Gong

Mais tarde, a constatação de que o mundo digital estava nos levando para o universo do excesso e da superficialidade, fez com que eu passasse a sentir uma necessidade enorme de enveredar pelo universo da parcimônia e do profundo. A redução e a síntese no movimento se tornaram então, a tônica de um novo processo que denominei Danças Haikunianas. A palavra Haiku é utilizada no mundo inteiro, exceto no Brasil, onde foi substituída pela palavra haikai, que, após a reforma ortográfica de 1943 (e a queda da letra k), passou a se grafar haicai. Um Haikai é uma das formas mais curtas da expressão poética da cultura tradicional japonesa que nasce do estado contemplativo do seu criador.  Com a amplitude, profundidade e significado de dezessete sílabas apenas, divididas em três versos, um Haikai consegue grande força de expressão num breve espaço de tempo. Um Haiku é uma pequena cápsula preenchida pela poesia do instante. Um Haiku dançante é também uma pequena cápsula preenchida pelo movimento do instante.


Na prática, como você aplica os princípios da "Arte da Presença" em suas aulas de dança e na criação de coreografias?

Aplico nas aulas o que chamo de Modus Operandi, e eles são sete: 1-ritual do chegar em si ; 2-projeções do imaginário ; 3-apologia do errar; 4-espírito aprendiz; 5-abençoada rotina; 6-sala de aula e aula em si; 7-apoio musical. 


Com respeito a aplicação do método nas criações : o método da Arte da Presença não  se aplica diretamente à criação. Ele se dedica somente á facilitação das dificuldades técnicas. Mas acredito que ele se aplique « por tabela « nas criações ou forma inconsciente. Com respeito as minhas criações: nunca me atrevi a coreografar os mirabolantes movimentos que, desde criança, povoam o meu imaginário. Muito mais forte do que coreografar, foi o desejo que tinha de romper com os c´dígos tradicionais da dança. E esse desejo se concretizava em exercícios de dança e nao em criações coreograficas.  Por isso, coreografar foi um apêndice na minha carreira de bailarina e professora. Interessante é que mesmo sem querer ser coreógrafa, acabei realizando 47 coreografias. Algumas delas feitas por necessidade, outras por razões circunstanciais e apenas três foram feitas como autênticas expressões da minha “primordialidade proliferante oriunda do paleolítico interior”, segundo Edgar Morin.


Existe uma abordagem específica que você adota durante o processo criativo?

Analisando hoje as coreografias que realizei, percebo que a característica das minhas criações coreográficas, desde a década de 70/80, foi sempre biográfica.  Acredito que a gente pode a partir de uma experiência em si mesmo, ultrapassar a dimensão individual e alcançar uma experiência coletiva (universal). Parafraseando Frida Kahlo: ''Danço a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor*.''

(*Frase original: “Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”)


Como é sua abordagem ao ensinar dança?

Para ensinar e aprender, é preciso ter dentro de si tudo aquilo que é para ser aprendido e ensinado. Não se ensina só através do que se lê ou se aprende, mas através de uma verdade inerente ao modo de ser. O ensinar não é “passar a receita”. Assim como as impressões digitais do indivíduo são singulares e únicas, assim deve ser o aprender e o ensinar: através da visão interior e exterior do mundo vinda da experiência singular e única, de cada um. Muitas vezes. é no próprio aprendiz que se descobre mais e mais sobre o “como das coisas”. Por sua vez, o aprendiz adquire o entendimento do “como das coisas” quando faz “a coisa” do seu própio jeito. E dessa forma, cria-se uma troca de informações que nutre tanto o professor quanto o aluno. Tudo é troca, ninguém ensina, a gente se aprende.


Em que medida sua experiência como bailarina e coreógrafa informa sua metodologia de ensino?

No caso do mestre ser um artista, o ensinamento acontece através de um veio que que vai além da voz orientadora e do saber técnico. O mestre artista acessa os alunos através de camadas de troca e de diálogo que vão muito além do que a camada técnica. Essas camadas mais profundas influenciam o curso dos acontecimentos valendo-se da intervenção de um imaginário fantástico e da utilização de algum princípio oculto presente na sua natureza artística, produzindo efeitos não naturais por meio de rituais ou de ações simbólicas, e por isso mesmo, sem explicação racional. Mas, nem todo artista é um mestre. Nem todo artista tem o dom de ensinar. Para ensinar, é necessário ter uma vontade genuína de passar seu saber adiante com prazer, pois o prazer de comunicar ensina mais do que qualquer coisa


Como você percebe a cena da dança contemporânea brasileira hoje em dia?

A dança hoje acontece num campo muito mais amplo que o palco. Ela acontece hoje na rua, no mato, em porões e garagens, nas casas das pessoas, no campo, na praia, nas praças e saguões de hotel e sobretudo na mídia online (internet). E isso é bom. O potencial de renovação do corpo é infinito. É obrigação do artista, a busca eterna dessas renovações e, para que o novo surja, vai ser preciso desalojar velhos padrões e vícios do corpo, romper com a forma vigente.  Tarefa nada fácil de se realizar. Quando mais se romper com as formas vigentes, mais desabrocharão novas formas na vida e nos afetos. Mas está em cada um de nós o poder de reverter essa situação caso queiramos que o palco sobreviva a essa onda atual. Penso que uma das maneiras simples e certeira de fazer a dança sair da globalização que acomete o mercado da dança atual e que esvazia as plateias e as salas de aula, é estipular o preço do nosso trabalho. Chega de nos adaptarmos ao preço que nos oferecem ou dançar por conta própria, já que as subvenções se atrofiam cada vez mais. Por outro lado, quanto mais o mundo midiático, eletrônico computadorizado, digital se desenvolve, mais importante se torna o cultivo da tradição e a reconexão de suas origens. Por ter o corpo como instrumento, a dança é quase que a responsável número um em manter viva a sua fisicalidade, sua ancestralidade na sua forma “acústica” de se apresentar em público. Há um tempo, li no livreto de um CD com músicas do Sarawak, produzido em 1998, um pequeno trecho que por ter a ver com meu pensamento acima reproduzo aqui:

“No entanto é irônico ver como que as pessoas de Sarawak lutam ansiosamente em substituir a cultura das suas músicas tradicionais pela música moderna, ou música ocidental, assim como o mundo ocidental tenta fervorosamente recapturar a riqueza e a beleza da música das culturas tradicionais como a de Sarawak”.

 

Quais são as mudanças e desafios que você observa em relação à época em que atuava como bailarina?

O fato de ter passado toda a vida adaptando meu corpo a um espírito turbulento e tenaz fez com que agora, aos setenta e cinco anos, esse espírito comece a se acomodar às regras de meu corpo. A necessidade de me expressar através da arte está bem mais assentada, a vontade que eu tinha de me mexer fisicamente diminuiu, minha alma também tem se acalmado, minha dança vem se tornando cada vez mais intimista e essencial. Durante 67 anos segui praticamente em uma só trilha, a trilha da dança. Quantos outras trilhas deixei de trilhar? Muitas! Para que eu possa amenizar minha nostalgia de outras trilhas, preciso antes, me despedir da trilha que percorri. Faço essa despedida escrevendo um relato autobiográfico – adoro biografias – dessa trilha, na esperança de que ele me abra espaço interno para outros jeitos de viver, para outras danças, outras músicas, outros sonhos, outras incertezas e delicadezas.


Você introduziu novos elementos ou ajustou a abordagem com base em suas experiências e nas mudanças na dança contemporânea?

Sim e não. Sim, pois uma vez incorporada a dinâmica de restituição, desvendam-se outros equilíbrios, outras tangentes. Novos princípios se corporificaram, surgem novas posturas em relação ao movimento que se apresentam para contrapor ao vigor original. Nesse ponto, não existindo mais o esforço e sim somente a ação em si, o artista se restitui a si mesmo e alcança a essência do puro “estado de dançar”. É nele que minhas aulas e eu estamos nesse momento. Não, porque procurei sempre nunca me fixar em estilo nenhum. Quando novas tendências surgiram, eu procurei entendê-las para atualizar meu trabalho em relação às demandas das novas formas de expressão, mas nunca me distanciando da visão original do meu próprio caminho.

Gostava de ver cada um dançando do seu jeito, cada um diferente do outro e sempre de formas diferentes, corresponentes à evolução do tempo. Acredito na dança que não se prende a algum estilo, que é sempre contemporânea’ ao tempo que é feita, com a liberdade de ser clássica em tempos modernos ou de ser moderna em tempos clássicos Acredito no romantismo, expressionismo, impressionismo, modernismo, vanguardismo, e todos os outros ismos existentes, desde que sejam a expressão autêntica – quase de “vida e morte“ – do artista que o expressa A dança, como arte cênica, deve de estar sempre conectada com o tempo em que vive, no qual está sendo realizada e tem a função de retratar ou espelhar a evolução da humanidade. Ela tem a capacidade de nos conectar com o presente, de nos conduzir para o passado ou nos levar para o futuro. O teatro e a dança são a captação condensada, concentrada de um momento da vida. Petipá foi contemporâneo na sua época, assim como cada um o é na sua época. Fui contemporânea nos anos 70, 80, 90, em 2000, 2010, 2020 e serei contemporânea até em 2040, se eu chegar até lá.

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Carol Contri

Jornalista, bailarina e professora



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