MURAL DA DANÇA

O trabalho do artista de dança em tempos de múltiplas tarefas

Imagem: Abertura Dança à Deriva de 2022, com Miro Queiroz. Foto Giorgio Donófrio | Domingo, 30 de Abril de 2023 | por Rogério Salatini |

A história do trabalho é tão antiga quanto a nossa história sobre a terra. E é uma história conflituosa, de luta pela sobrevivência. De dominação de corpos sobre corpos, de enfrentamento de ambientes hostis. Ao menos no ocidente, até, mais ou menos a Revolução Industrial Europeia, quando do surgimento dos direitos trabalhistas. Mas não nos iludamos, recentemente nos deparamos, como sempre, com trabalhadores em vinícolas sendo forçados à trabalho análogo à escravidão. 

Esta ferida ainda falta muito para ser cicatrizada, em diversas profissões, pois o trabalho é a produção de bens, materiais ou culturais, os quais poucas vezes são puramente de interesse do trabalhador, e muitas do interesse do contratante.

O trabalho com dança, que em comparação com outras profissões, pode ser visto até como um privilégio, do ponto de vista do humanismo, por ter o corpo como material de trabalho, e este pensar a si mesmo, por outro lado também é exaurido em treinamentos que beiram práticas “militares” (certa vez usei este termo em um artigo e fui repreendido – com razão – pois “militar” envolve uso de armas e outros expedientes muito distantes da dança). Se por um lado privilégio, por lidar com a materialidade primária da vida – o corpo – por outro, em um país que não valoriza como deveria a prática da dança, torna-se uma missão árdua e difícil de se exercer.

No que concerne à sobrevivência, no sentido da sustentabilidade econômica pessoal, muitas vezes manter-se fazendo dança é visto por muitos artistas como uma espécie de “guerrilha”. Nunca foi daquelas profissões que a família de um jovem celebrava ao este comunicar sua escolha profissional, por conta das instabilidade dos campos das artes e cultura no Brasil.  

São raros os postos de trabalhos para bailarinos e coreógrafos salvaguardados pelas leis de incentivo, de modo que, em si, já se configura um fazer autônomo, o qual carece de qualquer segurança nos termos das leis trabalhistas. Mas para não prendermonos à uma discussão puramente sociológica, é interessante fazermos um sobrevoo sobre o que recentemente constituiu o chamado campo da Dança – me limito mais efetivamente à São Paulo, por ter sido a cidade onde mais acompanhei estes movimentos. 

São Paulo é, até mesmo, considerada uma cidade privilegiada por contar com alguns financiamentos cruciais para a manutenção do trabalho de artistas da dança. No entanto, como em todo o país, lidamos com muitas dificuldades como fechamento de teatros, insuficiência de recursos, uma ameaça que sempre paira no ar de desmonte do pouco que se consegue, com muita luta, criar de espaços para o trabalho destes artistas.

Em 2007 o professor Albino Rubim escrevia que o governo se defrontava com “tristes tradições no campo das políticas culturais nacionais: ausência, autoritarismo e instabilidade”

Creio que são dois assuntos diferentes, mas que se retroalimentam, por conta, justamente das questões trabalhistas, o ofício do bailarino, coreógrafo, performer, intérprete, enfim, quem faz dança e os embates políticos de classes trabalhadoras. E as discussões políticas, sindicalistas, de luta de uma classe que, em um país com pouca formação para o contato com esta arte, vive lutando pra construir sustentabilidade no campo demandam ainda fortalecer-se, para que alcance-se um potencial de cobrança do poder público por atenção para este importante fazer artístico no país.

Em minhas reflexões trago uma dúvida que me perturba um tanto. Trata-se da diferença que costumeiramente se faz entre as profissões. Aqui e acolá ouvimos termos como “subempregos”, “bicos”, empregos, em tese, “não criativos”. O que me remete à algo que tento combater em meus pensamentos sobre artes, e que remonta à um tempo histórico, talvez presente até os dias de hoje, uma vez que vivemos épocas sobrepostas, segundo o qual o trabalho do artista teria uma espécie de aura de sublime, como se devesse ser visto como um fazer que merecesse um destaque maior do que quaisquer outras ocupações.

O assunto foi tema conceitual do trabalho de por exemplo Trisha Brown, que, segundo texto do curador André Mendonça do MASP, “radicalizou essa arte a partir dos anos 1960 de diferentes maneiras: com a ênfase no improviso como meio de criação, com a inserção da dança no cotidiano e com a incorporação de movimentos comuns do dia a dia em suas coreografias”. Esta busca pelo comum, descrita por Mendonça sobre o trabalho de Trisha pode parecer mais um acerto conceitual, mas sua importância é maior. Ainda que um fazer artístico situado em um campo distante do que se denomina trabalho, ou emprego, no senso comum, a tentativa da artista é de romper com uma certa aura predominante durante séculos nas artes, segundo a qual o artista seria um ser dotados de talentos e capacidades sobre-humanas.

O trabalho é o cotidiano, é com que o gastamos mais tempo em nossas vidas. Segundo a revista Forbes, a “média dedicada ao trabalho no Brasil é de 43,5 horas por semana, o que corresponde a 8,7 horas por dia.” Descontando o tempo de deslocamento nas grandes cidades. Segundo o IBGE, em 2021, a média salarial do brasileiro era de R$ 2.308,00. 

Não é segredo que a cultura e economia criativa é rentável. Segundo o Jornal o Globo, para cada R$1,00 investido em cultura via Lei Aldir Blanc, por exemplo, foram gerados R$1,65,00. Mas então porque nos deparamos com tanta precariedade no setor? Segundo o estudioso do tema Albino Rubim, nos deparamos com as tais tristes tradições no setor da cultura. Uma tradição de descontinuidade, segundo a qual, sequer consolidamos nossa democracia como país, quanto mais políticas destas ordem. 

Para concluir, pedi a uma artista da dança, mais especificamente do Tango, que se define como “trabalhadora do Tango” que comentasse seus sentimentos a respeito do tema. Adriana Nogueira desdobra-se entre aulas, apresentações e o próprio pensar o Tango como arte, mercado e profissão. Uma profissional de referência no ensino, pesquisa e difusão do Tango em São Paulo e outras localidades. Gostaria de reproduzir aqui suas impressões, para que esta voz coubesse neste espaço e nos ajudasse a compreender o momento atual de quem está na linha de frente, nas salas de dança e de espetáculos, fazendo da dança seu ganha-pão.

Seguem o depoimento adaptado para este texto:

A partir do convite feito à Adriana, ela se propôs a organizar seus pensamentos, suas ideias e seus fundamentos nestes 13 anos em que atua como trabalhadora do Tango. Adriana começa a dançar a partir do momento em que começa a trabalhar como professora de informática. Segundo ela, contar esta história a ajuda a compreender seu lugar social, seu lugar dentro das estruturas de classe, ainda como uma menina buscando a dança como campo de interesse. Ao escolher se dedicar à dança, abandona o emprego com informática e encontra a Escola Técnica de Artes. Esse acontecimento amplia seus horizontes com a dança. Seu primeiro trabalho com Tango foi em um restaurante, o que lhe pareceu incrível, por coisas relativamente simples, como ter à disposição um vestido, comprar um sapato de tango. Sua primeira viagem à Buenos Aires foi paga por um casal por meio de permuta por aulas. Adriana, por muito tempo, trabalhou em restaurantes, se apresentando, junto com atividades em espaços culturais. A partir da renda que conseguia com os trabalhos que fazia, foi construindo sua atividade com o Tango. Adriana comenta que sua consciência de classe vai aparecer mais fortemente durante a Pandemia de COVID-19, quando, para uma dança a dois, se extinguiram os espaços para trabalhar. Por sua origem, ela não possuía um vestido de tango. Usava roupas de brechó. Estes figurinos são caros. Um sapato de tango argentino custa cerca de R$ 450,00. Um cachê de uma apresentação vale em média R$ 150,00.

Em seu depoimento, Adriana comenta que o “mundo do Tango” é um mundo caro. É sobre danças, mas também sobre restaurantes, sobre vinhos, sobre elementos de uma cultura que é relativamente cara, para ricos.  

A artista começou a avaliar que se constrói no “Mundo do Tango” um ‘mercado’ de uma classe rica, luxuosa, no entanto, os artistas vivem numa correria para acompanhar este mercado e esta imagem de riqueza, sendo um trabalho precarizado para os profissionais. 

Adriana descreve que é um mercado que dispõe de muitos recursos, mas os profissionais não tem acesso, como se fossem mais um produto a ser consumido neste mundo de luxos e riquezas. Além de ser tudo sempre muito efêmero nos trabalhos. 

A artista comenta também da dificuldade de ser contemplada em editais, por serem vistas como danças diferentes, uma como dança social e outra mais como dança artística. Existem campeonatos, e a valorização do profissional se dá por participar destes campeonatos, de se ter uma roupa, um sapato adequado, etc. 

Adriana conclui afirmando que se vê como trabalhadora do Tango, além de artista, pois todas as demandas que envolvem realizar seu trabalho está muito além do que se vê nas apresentações.

A partir do depoimento generoso de Adriana Nogueira conseguimos enxergar claramente o ofício do artista da dança como trabalhador, com seus direitos trabalhistas precarizados, tendo de criar seus próprios contextos de trabalho além de produzir seus conceitos e suas obras artísticas. 

Estamos longe, no Brasil, de perceber a importância do trabalho de artistas da dança, e de demais artes, e desenvolver políticas efetivas que ajudem a criar sustentabilidade para seus profissionais, e manter com qualidade artes tão importantes para o desenvolvimento civilizatório em nossa sociedade. 

Que possamos seguir nesta luta, trazendo beleza, inteligência, diversidade cultural, e de fato transformar o Brasil em um país de todas as artes. 


*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Publicado por :



Rogério Salatini

Artista, produtor cultural e pesquisador de artes



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