MURAL DA DANÇA

O Horizonte Projeto: Sobre a Temporalidade de Fazer

Imagem: Fabulações sobre a ausência do mar, trabalho de Marina Guzzo. Foto Gui Galembeck | Sexta, 05 de Novembro de 2021 | por Portal MUD |

por Bojana Kunst

tradução: Marina Guzzo

Nas últimas décadas, uma das palavras mais usadas entre artistas, produtores e outros trabalhadores culturais tem sido a palavra projeto. Estamos todos envolvidos em projetos, provavelmente vários deles; estamos empenhados na finalização de projetos antigos; e estamos constantemente a iniciar novos projetos, continuamente, como parte de movimentos projetivos incessantes de produção. Com cada projeto estamos a avançar para o fim de algo; da invenção à conclusão, do início ao fim do processo, estamos - de uma forma muito específica - a avançar para uma projeção final.

A palavra "projeto" é tão frequentemente proferida na cultura e arte contemporânea que a pura frequência da sua utilização já é motivo de alarme. Esta denominação avassaladora, utilizada para todo o tipo de produtos culturais e obras artísticas, contém uma dimensão temporal peculiar, que nunca foi posta em evidência e questionada como tal.

Neste breve ensaio gostaria, portanto, de refletir sobre como esta peculiar temporalidade enquadra os processos artísticos contemporâneos de fazer, colaborar e criar: o projeto acaba por ser o horizonte último do fazer nos dias de hoje. Há algo de muito desconcertante no trabalho e na temporalidade projetiva do projeto: independentemente das inúmeras possibilidades que se abrem, projeta, no entanto, a sua própria realização como último horizonte do trabalho. O problema, portanto, reside no fato de que, independentemente das aberturas e das transformações dentro da temporalidade projetiva, o futuro ainda é projetado como continuidade cronológica com o passado, e o sentido surge da continuação progressiva.

Não se pode ignorar que a banalidade simples e o cotidiano do uso do termo projeto falam do fato de que este termo é frequentemente usado como um significante vazio, um conceito que não implica nada em particular. Ele não denomina nada, não acrescenta nada ao que realmente fazemos.

Podemos dizer que este termo é usado de forma pragmática para miríades formas de fazer e agir. Não estarei eu, então, inclinada a espremer demasiado a pura aplicação pragmática desta palavra em particular ao trabalho artístico? Não tenho tanta certeza sobre isso.

Lembro-me de Myriam van Imschoot escrever sobre outra palavra igualmente "vazia" que proferimos quando gostaríamos de descrever o trabalho artístico na comunicação cotidiana. Ela escreve sobre a palavra "interessante", que hoje em dia é muitas vezes usada como adjetivo descritivo sem qualquer referência à coisa ou obra que se está referenciando. Abstração semelhante da linguagem está em ação na palavra projeto, onde a referência à temporalidade da obra nunca é questionada. O projeto sempre denomina não só um termo específico, mas também uma atitude temporal ou um modo temporal no qual a conclusão já está implícita na projeção do futuro.

Muito do que os artistas fazem hoje parece estar preso a este tempo projetivo nunca abordado. O que ironicamente obtemos no final é uma abstração final, um "projeto interessante", que pode até funcionar como um valor especulativo indefinido entre a comunidade de produtores culturais e artistas. Algo aparece imediatamente no projeto quando este está sendo descrito como um "projeto interessante".

A abstração traiçoeira da palavra projeto é uma das razões pelas quais é necessário enfrentar e desmantelar este termo: ele tem de ser colocado na berlinda  devido à sua perigosa independência e à implementação de tudo na sua dinâmica temporal. A segunda razão reside no fato de que a temporalidade projetiva do trabalho tem múltiplas consequências desconcertantes na vida das pessoas envolvidas na criação contínua de projetos, especialmente nos campos cultural e artístico.

Parece que sua onipresença abstrata está literalmente absorvendo a experiência do trabalho artístico e da realização das obras e, ao mesmo tempo, formando a peculiar temporalidade da subjetividade que está envolvida na sua realização.

A temporalidade projetiva está intimamente ligada à experiência subjetiva do tempo; pode-se argumentar que as subjetividades contemporâneas são cada vez mais vivenciadas como simultaneidade de muitos projetos, sejam eles privados, públicos, sociais, íntimos, etc. Parece que a temporalidade do projeto também influencia o ritmo da transformação da subjetividade, que tem de ser flexível, ao mesmo tempo que se move para uma realização, uma implementação.

A temporalidade projetiva do trabalho e da atividade está entrelaçada com a aceleração dessa mesma atividade, onde o inesperado só acontece devido à explosão da crise, do esgotamento e da retirada. Esse movimento contínuo de conclusão e consumação é também um movimento rígido e destrutivo de progressão. Sua flexibilidade é na verdade destrutiva da subjetividade e de seu entorno colaborativo. A subjetividade é abstraída dos contextos de trabalho, tornando-os cada vez mais iguais, apagando as diferenças entre as comunidades de trabalho e, assim, despojando a força política do trabalho.

A razão para isso é a constante falta de tempo, uma espécie de privação de tempo - o que, naturalmente, é um paradoxo - no que diz respeito às possibilidades que o projeto tem para o futuro. Parece que quanto mais há para projetar no futuro e mais possibilidades há para o projeto ser completado, menos tempo está à nossa disposição para manter e suportar, e permitir relações sociais, discursivas, políticas ou íntimas.

O projeto torna-se um horizonte último da nossa experiência. Ironicamente, uma das palavras mais usadas na produção cultural para designar a conclusão do projeto (especialmente na esfera acadêmica, mas também cada vez mais nas artes) é o prazo final. Um limite mortal parece estar no final do projeto, um momento de pura conclusão, a consumação da vida criativa, sem experiência de seguimento. Ao mesmo tempo, um sentimento ilusório de que tudo continua até a eternidade ilumina um pouco essa tensão, porque há tantos projetos para completar.

O projeto é o horizonte final da realização porque, como é o caso do horizonte real, ele está sempre recuando enquanto tentamos persegui-lo. Mas isso não significa que a consumação não seja parte do processo. Além disso, neste vazio projetivo há muitos limites mortais a ultrapassar e há muito a consumir: o futuro parece radicalmente fechado, oferecendo todas as suas inúmeras possibilidades. A privação do tempo obstrui a imaginação e a criação de gestos radicais, e desabilita qualquer experimentação com o presente duradouro.

Podemos dizer que a temporalidade projetiva é um modo de produção principal na arte e cultura de hoje em geral. Está também a influenciar a forma como o valor cultural ou artístico se articula hoje em dia, e como, por exemplo, a arte e a cultura contemporânea estão a articular o seu direito a serem apoiadas, financiadas e apresentadas em público.

Em vez de afirmar e articular o valor da criação, o direito (humano) à imaginação, a criação de novas formas e deturpações radicais. Em vez de afirmar o seu valor com constante articulação das potencialidades humanas e da convivência, o valor é na maioria das vezes reconfirmar a enumeração avaliativa de projetos e a hiperprodução.

A enumeração de projetos e sua eficiência e sucesso estatístico - bem como a hiperprodução de invenções e intervenções no espaço social - terminam muitas vezes em uma afirmação justificada de que a arte e a cultura são importantes porque são vitais para a economia contemporânea e sua produção de valor. No entanto, com esse tipo de produção, ocorre uma fragmentação de interesse, relações políticas e abstração de contextos, porque a importância econômica é medida e aplicada utilizando um modelo de trabalho cada vez mais geral - baseado no número e na visibilidade dos projetos. Tal afirmação priva de fato a criação artística e as obras de potencialidade, e lança o trabalho de um artista numa batalha competitiva que a arte nunca poderá vencer.

O problema reside no fato de a arte nunca poder projetar o valor especulativo do projeto como especulação financeira do investimento, porque pertence profundamente ao público e é, portanto, "disponibilidade para o nada", como diria Giorgio Agamben.

Isso significa que ela pertence ao público para que possa ser superada, apropriada e articulada através de muitas temporalidades diferentes. Há algo fundamentalmente diferente na prática da própria criação quando relacionamos esta prática de trabalho com o tempo. O que está em jogo na prática da arte não é a especulação sobre o seu valor - uma constante venda e disseminação do que ela pode vir a ser - mas sim o puro poder da imaginação, da criação de formas através das quais a nossa vida em conjunto pode ser percebida e realizada, dos modos de invenção que fazem parte da potencialidade humana de agir.

A razão das tensões e sentimentos de fraqueza na produção cultural contemporânea é uma profunda incongruência entre a prática artística e a própria temporalidade projetiva: uma profunda incongruência entre o trabalho e o seu horizonte projetivo (e isto não se aplica apenas ao trabalho artístico, mas também ao trabalho em geral).

O tempo entre a invenção e a conclusão do trabalho é apreendido como progressão (um movimento em direção a algo que deve ser concluído, um movimento em direção à finalização). Esta progressão pode ser cheia de experimentação e de reviravoltas de várias situações e dinâmicas criativas. Contudo, ao mesmo tempo, um projeto deve desde o início projetar a sua própria consumação; tem de antecipar e avaliar a sua conclusão desde o início e trabalhar para o seu próprio encerramento.

É verdade que tudo o que fazemos está sempre orientado para o futuro, pelo menos no sentido de que a nossa atividade irá durar algum tempo, há sempre uma temporalidade de "fazer". Mas a questão é se o trabalho/obra é realmente um caminho direto relacionado com a sua consumação; com a conclusão do ato. Ou será a invenção algo que realmente abre diferentes articulações de convivência, uma prática de re-articulação da linguagem e deslocamento da atividade, um plano de imaginação e atualização humana que não está na aventura acelerada rumo à sua finalização futura?

Mesmo que a constante criação de projetos dê a sensação de flexibilidade e dinamismo criativo, na verdade não está permitindo a mudança, mas sim a mesmice, ou melhor, a exaustão da mesmice.

É importante mencionar o futuro retrospectivo específico do projeto, que sempre permite muitas possibilidades, mesmo que tudo tenha de ser planejado com antecedência para alcançar o futuro já projetado. Um projeto funciona como um horizonte de expectativa, com muitas possibilidades, mas sem mudanças reais. A hora do projeto não é a hora do acontecimento, o que abriria a janela do inesperado, com o tempo fora do comum.

O projeto pode ser descrito mais como um tempo administrativo, onde algumas possibilidades estão sendo realizadas e outras não estão na linha progressiva entre a invenção e sua realização. O que é particularmente interessante aqui é observar como o tempo administrativo do projeto resulta literalmente num aumento do trabalho administrativo e exige múltiplas habilidades gerenciais do artista e de outros trabalhadores (habilidades de avaliação, auto-avaliação, apresentação e aplicação, etc.).

Não é de admirar que os artistas tenham se tornado um modelo de insegurança criativa no trabalho nas últimas décadas: ela/ele estão profundamente envolvidas/os no tempo projetivo. Isto também está mudando profundamente o papel social e público do artista: a dimensão pública de seu trabalho é projetada, não mais imaginada. Isso significa que a dimensão pública da sua obra é na maior parte do tempo concebida como a finalização dos seus fins, e o público torna-se um resultado do fato de a arte ser uma parte importante da economia. A prática artística deve ser entendida como pública porque é uma prática de trabalho, uma prática antagônica de fazer e agir.

Gostaria de concluir este ensaio de introdução à minha residência em Les Laboratoires d'Aubervilliers com a afirmação de que não existe um uso vazio ou neutro do termo projeto; o seu enunciado já implica uma temporalidade específica do trabalho artístico. Um projeto é, de alguma maneira, uma forma perigosa e esmagadora de trabalho contemporâneo. É claro que todo trabalho e atividade são  temporais. O que quer que façamos está sempre relacionado com o tempo ainda por vir, pelo menos no sentido de que a nossa atividade irá durar algum tempo. No entanto, existe uma grande diferença entre os entendimentos do trabalho que são duradouros, ou seja, que duram através da atividade laboral, e os que são projetivos, ou seja, que se movem em direção à sua própria conclusão.

Esta diferença pode ser comparada com a diferença entre aventura e busca: um projeto é muito mais semelhante a uma aventura (tem uma miríade de possibilidades abertas, no entanto elas têm de levar ao fim consumidor para que a aventura seja aventureira) enquanto que, numa busca, o tempo é consumado na própria atividade, na sua resistência.

Uma forma de lidar e abordar criticamente a problemática compreensão projetiva do trabalho artístico é através da divulgação da natureza durável e duradoura do trabalho e, portanto, de abordar esta relação peculiar entre trabalho e tempo.

Isto pode ser visto em numerosas tentativas de exploração da duração pelos artistas nas últimas décadas como uma poderosa estratégia para inverter a formação dominante da temporalidade. Outra forma de abordar a esmagadora temporalidade projetiva poderia ser intervir diretamente no ritmo de produção e, na verdade, produzir de forma contínua e excessiva, de modo  que cada momento "(não)significativo" do projeto esteja a produzir em excesso miríades de traços, evidências, sugestões, discursos, etc.; de alguma forma, o próprio projeto pode ser invadido pelo puro poder da atividade. Ou também, pode ser possível afirmar subversivamente a natureza projetiva da obra contemporânea na arte e na cultura, e literalmente tomar a projeção como a única condição em que é possível trabalhar hoje em dia.

Com esta abordagem, o projeto é levado tão a sério, que a natureza da possibilidade de flutuar livremente para completar o projeto é, na verdade, revelada como uma limitação final e rígida.


*Texto publicado no Le Journal des Laboratoires, Set-Dez. 2011. Link aqui.

Bojana Kunst

Professora do Instituto de Estudos de Teatro Aplicados, JLU Giessen. 

Filósofa e teórica da arte performática.



Marina Guzzo

Artista e pesquisadora de corpos em movimento.

Professora do Instituto Saúde e Sociedade da UNIFESP- Campus Baixada Santista







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