Vista de São Paulo/SP. Foto: Rogério Salatini.
São Paulo é uma das cidades que mais comete equívocos políticos entre as capitais cosmopolitas do mundo. Entre Nova Iorque, Pequim, Tóquio e qualquer outra megalópole, São Paulo se destaca por não conseguir transformar sua grande produção financeira em repercussão geopolítica internacional. Não se tem notícia de nenhuma política paulistana que tenha sido copiada ou seja modelo para outras cidades mundo afora. A começar pelos rios da cidade: um atestado de falta de preocupação com a imagem pública internacional da capital paulista ostentar dois rios do porte do Tietê e do Pinheiros como duas grandes redes de esgoto a céu aberto e não haverqualquer projeto sério sendo desenvolvido para resolver esta questão.
Para fazer justiça à “locomotiva do país”, sua política de acolhimento de refugiados foi reconhecida pela ONU como uma das mais significativas do mundo. De fato, essa vocação de receber migrantes e imigrantes que venham somar-se ao conjunto de incansáveis operadores da urbanidade paulistana não é nova. Ainda assim, é algo a se celebrar, em um momento em que diversos países e territórios do mundo estão sob ataques em conflitos e guerras, ou, até mesmo, nas palavras do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, “genocídios”.
No entanto, em nenhum outro setor, São Paulo inspira qualquer país a fazer qualquer coisa como se faz aqui. E, quando o assunto é a cultura e as artes, estamos verticalizando nossa incrível capacidade de perder oportunidades de expansão diplomática, de estabelecer relações enriquecedoras para nossos cidadãos paulistanos, e inclusive inspirar outras cidades menores do estado.
Segundo Lia Calabre e Ana Paula do Val, respectivamente da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do ABC, houve dois momentos em que a cultura em São Paulo mereceu destaque. O primeiro,por encampar as primeiras políticas públicas para cultura no Brasil, ainda na década de 1930, com a criação do Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo, instituído em 1935 na cidade, e dirigido pelo famoso escritor Mário de Andrade (1893-1945). A segunda experiência, que parece menos mítica, mas mais pujante, se deu pela atuação de Marilena de Souza Chauí (1941- ) à frente da Secretaria de Cultura da Cidade, no governo municipal de Luiza Erundina de Souza (1934- ), nos idos dos anos 1980, quando, segundo Calabre e Do Val, “a gestão colocou em pauta um conjunto de questões que acompanharam as discussões de políticas culturais ao longo dos anos 1980, tais como as definições e resoluções da I Conferência Mundial de Políticas Culturais da Unesco (Mondiacult, 1982) até os debates presentes na Assembleia Constituinte de [1987-]1988”.
Atualmente, sob a gestão de José Antônio Totó Parente (1967- ), mais conhecido como Totó Parente, a Secretaria de Cultura, na atual prefeitura de Ricardo Nunes, foi rebatizada como Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Esta proposta dá continuidade a uma agenda que começara em nosso país em 2018, ano em que o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, chegou ao poder. Em 2018, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, do Brasil (BNDES) lançou uma publicação chamada “Visão 2035: Brasil, país desenvolvido”. O documento apresentava diagnósticos e propostas em diversos setores para uma nova agenda nacional desenvolvimentista que deveria ser construída e executada no período 2018 – 2035.
É nesse documento que a economia criativa, conjuntamente com o que se denomina “indústria criativa”e “indústria cultural”, aparece fortemente como horizonte estratégico para a cultura no país. Já nas primeiras páginas do documento, na parte que talvez devesse tratar de cultura, mas que o próprio documento chama “economia criativa”, os autores do texto, Diego Nyko (que mantém vínculo com a UNICAMP e trabalha com questões da economia, com ênfase em economia internacional, segundo dados disponíveis na internet) e Patrícia Zendron (Doutora em Economia da Industria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirmam que “a tendência futura é de que o crescimento da indústria criativa permaneça acima do crescimento mundial, e o Brasil demonstra potencial ainda maior de crescer, o que reflete a dimensão do mercado doméstico, a criatividade para geração de novos produtos, conteúdos e serviços e a notória riqueza cultural brasileira, um dos mais importantes insumos de nossos produtos e serviços”.
Pois bem, já temos um parâmetro de comparação. Se nos anos 1980, sob a batuta política de Erundina, Chauí dedicava-se ao debate internacional para produzir definições que pudessem pautar as políticas públicas para cultura na cidade, e, talvez, no país, em 2025 temos as definições discutidas e acertadas pela cartilha de um banco de desenvolvimento, sob os conceitos de dois estudiosos da economia e da tecnologia, que parecem ter claro que a cultura deve existir a partir de noções industriais e comerciais, como insumos para a criação de produtos que gerem riqueza e crescimento econômico.
O que parece não ter importância para essa agenda da cultura e economia criativa são os valores que fundamentam a própria cultura. Segundo Sidney Mintz (1922-2015), que foi pesquisador e professor do Departamento de História da John Hopkins University, “define-se cultura como uma propriedade humana ímpar, baseada em uma forma simbólica, “relacionada ao tempo”, de comunicação, vida social e a qualidade cumulativa de interação humana, permitindo com que as ideias, a tecnologia e a cultura material se “empilhem” no interior dos grupos humanos”.
Mintz nos lembra que, em 1877, “Edward Burnett Tylor [1832-1917] empregou pela primeira vez o termo ‘cultura’ para referir-se a todos os produtos comportamentais, espirituais e materiais da vida social humana”. Além desses significados, mais “espirituais”, para o termo “cultura”, bem mais recentemente, parecíamos estar avançando no entendimento de que é o país que deve garantir o direito à cultura ao seu povo, em detrimento da visão de que o povo deve ao país sua cultura como insumo para produção de crescimento econômico.
Em 2005, um marco significativo deste avanço, que parece cada vez mais perdido diante das políticas propostas por grupos liberais, republicanos e até mais radicais, quanto ao conservadorismo do desenvolvimento humano pelas vias da economia, foi a Convenção da Unesco Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Paris, 2005) que estabeleceu os seguintes objetivos e princípios para a cultura entre os países que participaram da Conferência:
(a) Proteger e promover a diversidade das expressões culturais;
(b) Criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente de forma mutuamente benéfica;
(c) Incentivar o diálogo entre as culturas com vista a assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura de paz;
(d) Promover a interculturalidade para desenvolver a interação cultural no espírito de construir pontes entre os povos;
(e) Promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e aumentar a conscientização sobre seu valor nos níveis local, nacional e internacional;
(f) Reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, particularmente para os países em desenvolvimento, e apoiar ações empreendidas nacional e internacionalmente para garantir o reconhecimento do verdadeiro valor desse vínculo.
Esses tópicos estão presentes no documento oficial publicado pela Unesco como resultado dos debates da Conferência e em nada assemelham-se com os princípios da cartilha do BNDES, ou da agenda cultural que se pretende desde 2018 para o país. Em termos econômicos, para os entusiastas da transmutação de valores humanos em produtos consumíveis, entramos em um novo momento; já para aqueles que entendem que já estamos tendo problemas com o volume de consumo de produtos de todos os tipos e que é uma necessidade urgente retomarmos valores humanos diante do domínio das empresas de tecnologia em quase todos os setores da vida, concluímos que, em vinte anos retrocedemos mais de duzentos anos – haja vista que a proposta que dá nome a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo hoje parece datar dos tempos da revolução industrial, quando explorar bens materiais e imateriais era sinônimo de avanço social.
A capital de São Paulo perde mais uma vez a chance de ganhar protagonismo global, ou de propor modelos de políticas públicas que reverberassem em termos geopolíticos internacionais (ou mesmo nacionais), apostando no retrocesso, em uma agenda que abre mão de expor a produção cultural paulistana e de criar corredores de trânsito e troca cultural com cidades e países que poderiam colaborar em ações e contextos para a cultura, entendendo a dimensão cultural como um dos mais fortes elementos de sustentabilidade das nações e dos povos, assim como dos ideais democráticos, e escolhe apequenar-se e cumprir desígnios de um poder econômico que nada deve reverter em termos de desenvolvimento humano, e mesmo urbano, para a cidade.
E não é por falta de recursos, mas por uma escolha de investir os milhões de reais de que dispõe em projetos que fazem da cidade apenas um endereço de passagem, um lugar de consumo de uma cultura corriqueira, desfigurada, ultraprocessada, na forma de produto, que deve perder-se no tempo, poluindo o ambiente humano da cidade – como faz com seus rios e com quase tudo que escolhe tratar como esgoto aberto, sua “imagem de capa” em seu perfil nas redes internacionais, apresentando-se como cidade sem respeito por seus próprios cidadãos e por suas próprias riquezas naturais e culturais.
Assim, Ricardo Nunes, por meio da gestão de Totó Parente na pasta de gestão política da cultura, bem como Tarcísio de Freitas, por meio de Marilia Marton, igualmente, em nível estadual, vão deixando seu legado de “coisificação” da cultura, e consequentemente das artes, o que significa empobrecer, ou até desfigurar, ao ponto de destruir, os campos da expressão humana mais caros às sociedades mais desenvolvidas em qualquer tempo histórico, desde que o ser humano existe na face da Terra.
Resta-nos esperar que, por conta das pressões cotidianas que pesam sobre os artistas em sua sobrevivência instável, quanto às condições de trabalho, estes possam resistir e, sobretudo, não se deixarem contaminar por essa forma de relacionar-se com a cultura, o que faria da cidade, hoje, terra arrasada, com poços envenenados e celeiros queimados no campo das artes.
Rogério Salatini