Crédito das Fotos: Beto Assem
Por Michele Carolina
A performance “Si-pó” apresenta posicionamentos e sugere reflexões no jogo entre a sonoridade e os significados que o próprio título contém. Ao ouvir a palavra cipó, a imagem de um vegetal que habita as árvores e possui formato similar a uma corda logo vem à mente. É apenas ao ler o programa que o público descobre o jogo entre som, grafia e significado da palavra proposto pelo amazonense Corpocontemporâneo21 – CC21. Cipó é uma planta trepadeira que vive pendurada nas árvores e o “si-pó” que nomeia a performance é uma palavra composta pelo pronome pessoal “si”, que expressa a ideia de diálogo da pessoa com ela mesma, e o substantivo “pó”, que pode remeter a imagens tanto de terra quanto de sujeira. A interpretação dos termos é aberta e cabe a cada pessoa que a presencia tecer significados acerca do “si-pó” que a performance sugere / expressa / aborda.
Uma camada de terra cobre todo o corpo do performer Odacy Oliveira, dos cabelos até a sola dos pés. A terra está em contato direto com a pele. Pele terra. Pele pó. Pele ambiente. Ele veste a terra. A terra é parte do corpo dele. Sua presença é antecipada por uma sonoridade de frequência grave, com modulações de intensidade que ocupa o espaço performativo, tensionando o ambiente com sua presença observadora e silenciosa. Aos poucos, Odacy se move como se estivesse reconhecendo aquele lugar. Sobe nas paredes. Faz pausas. Olha.
A tríade ambiente, performer e sonoridade pode ser apreciada pelo público de diversas formas. A ação acontece em deslocamento de uma extremidade a outra no Jardim do Galpão do SESC Campinas. Há quem acompanhe de perto, em pé, há quem observe a ação de longe, há quem alterne estar próximo e distante, sentado e/ou em pé. Performer e público ocupam o jardim em um movimento compositivo conjunto. O deslocamento no espaço é acompanhado pela transição da luz do dia para noite ao entardecer. Múltiplos insetos integram espontaneamente a cena como se reivindicassem espaço na selva de pedras monoespécie construída pelos seres humanos.
Foto Beto Assem
Carvão, terra e farinha são materialidades dispostas ao longo do trajeto. Formam desenhos no chão, se sobrepõe ao concreto, convocam o performer a friccionar seu corpo com estes diferentes solos sobrepostos. Odacy risca o chão com carvão, recobre seu corpo de farinha, sobe nos troncos das árvores, rasteja no chão, aproxima-se do público com cautela e delicadeza. A corporalidade e gestual do artista dão pistas de que a cidade não é seu habitat. Sua presença evoca a floresta, sua presença materializa a floresta em ambiente urbano como um presente para a lembrança urbanóide de que o ser humano é também natureza.
O encontro de Odacy com uma grande árvore acolheu o último momento da performance. As cascas dos troncos humano e vegetal em contato, as colorações e pausas sugeriam simbiose. Braços, galhos, pernas, gravetos, folhas, dedos, mistura de seres em coexistência. A sonoridade, composta por sons graves no início, se altera para uma paisagem diversificada, que mesmo sendo eletrônica, remete a sons de pássaros e natureza, como se a paisagem sonora criasse uma trajetória em ascensão da terra para o céu, coincidindo com o percurso da performance. Na copa da árvore, Odacy interage com uma corda e o contato sugere metamorfose, corpo, corda, cipó, casulo, voo. O performer desce em espiral, a corda raspa no solo carvão fazendo subir uma bruma de pó e num mergulho de cabeça da copa para o chão, Odacy novamente se põe em pé e caminha para fora do jardim.
* Michele Carolina é artista, produtora, parecerista e pesquisadora. Doutoranda no Instituto de Artes da Cena na UNICAMP com o projeto de pesquisa intitulado “Corpo bioma: elos cidade floresta para desespecular a vida. Criações cênicas a partir da dança contemporânea”. Graduada em Licenciatura Português e Inglês. Formada atriz pela Escola Livre de Teatro de Santo André (DRT 48.633). Idealizadora, dançarina e coordenadora no Coletivo Ruínas, plataforma artística independente de investigação, pesquisa e criação transdisciplinar, que desenvolve trabalhos cênicos, instalações, intervenções urbanas e performances em intersecção com audiovisual expandido, música, dança, teatro e tecnologias.
** Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 13a. Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.
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