Permitir-se desequilibrar: breves comentários sobre a presença Lēnablou e sua filosofia dançada no Departamento de Artes Corporais da Unicamp

Lēnablou no Departamento de Artes Corporais da Unicamp. (Foto de Nabor Jr).

Por Laís Breyton (Estudante do curso de dança da Unicamp)

A 14º Bienal Sesc de Dança tomou em movimento e criticidade a cidade de Campinas em 2025. Nesta edição, ganhou relevância a participação da Temporada França-Brasil 2025, que contou com a presença de espetáculos da França continental, de Guadalupe e da Costa do Marfim, e propôs diálogos entre ancestralidade, identidade, política e memória.

A bailarina e coreógrafa Lēnablou foi um dos maiores destaques desta edição da Bienal. Antropóloga, coreógrafa, dançarina e educadora, natural de Guadalupe — território ultramarino localizado nas Pequenas Antilhas, parte do Estado francês —, Lēnablou é uma das principais referências da dança caribenha contemporânea.

Com importante reconhecimento internacional, a artista atuou como professora em instituições como o Mudra (Bélgica), a Ecole de Sables (Senegal) e circulou artisticamente em plataformas como o CADD, na Duke University (Estados Unidos), através da residência Afro-Fem¹.

Criadora da Techni’ka, método sistematizado e publicado no livro Méthodologie et principes culturels caribéens pour l’enseignement du gwoka et du bigidi (2020), e do conceito de bigidi, inspirado na tradição guadalupense do Gwoka, Blou propõe a dança como filosofia de vida, capaz de transformar instabilidade em equilíbrio e desarmonia em harmonia. Sua proposta, expandida no projeto Bigidi’art, reafirma a impermanência e a adaptação como forças de resistência cultural e de reinvenção da existência.

A artista apresentou, em Campinas, três sessões do espetáculo Le Sacre du Sucre — traduzido para o português como O Rito do Açúcar —, uma criação coreográfica em que o açúcar, elemento central da colonização e da exploração nas Antilhas, tornou-se metáfora e matéria para um rito que une crítica e dança.

Em cena, o espetáculo inicia com uma dança entre Lēnablou e dois músicos; uma luz baixa fez crescer gestos entre pés e mãos, com pequenas sonorizações. Logo, os dançarinos vão até um calçado que cria sons conforme o ritmo da caminhada dos pés. O espaço passa a ser preenchido em todas as dimensões, o som e o movimento se unem em um e, por certos minutos, você não identifica mais a separação entre música e dança. Ali, um corpo que dança é sempre um corpo sonoro, e um corpo sonoro é sempre um corpo que dança.

Em entrevista de Lēnablou para a Bienal, ela explica que o espetáculo foi construído em torno de três conceitos inerentes à matriz gwoka: O lawonn (círculo) remete a uma sociedade própria dos afrodescendentes, à margem do sistema; o makè-dansè (relação bailarino/tamborileiro) é a metáfora da relação com o outro; o bigidi, a sua assinatura de escrita coreográfica sobre o desequilíbrio dinâmico. Para a artista, a obra não se interessava em apresentar o trauma e o sofrimento vivido pelos afrodescendentes na escravização, mas sim em mostrar as inteligências do corpo, em forma de bigidi, na preservação da vida daqueles que sofrem (e sofreram) com a colonização.

Lēnablou dançando o espetáculo Le Sacre du Sucre. (Foto de Ernest’s Mandap).

Em realce, Lēnablou dança o equilíbrio e o desequilíbrio com exímia transferência de peso entre uma perna e outra; a instabilidade é retomada e perdida por um contínuo jogo de transferências de apoios, ora sobre os calcanhares, ora sobre os metatarsos, ora sobre a borda interna e externa dos pés.

O Bigidi é um dos trabalhos técnicos e artísticos mais encantáveis da obra de Lēnablou, amplia-se o jogo de estabilidade e instabilidade também para repensar as lógicas sistêmicas em que vivemos.

O bigidi é uma prática de movimentos que resistem à derrota dominando a desestabilização. Essa é agora a minha [Lēnablou] maneira de pensar a escrita coreográfica, que integra e aceita a imprevisibilidade, o acidente, o erro como um reservatório de criação situado no tempo e no espaço. (Tradução de Luciane Ramos-Silva, 2025)

Para além do espetáculo, Lēnablou fez dois generosos encontros teórico-práticos no Departamento de Artes Corporais da Unicamp, onde discutiu sobre seus interesses de pesquisa e sua técnica de dança; ampliando uma constelação de diálogos que conectou sua criação com reflexões críticas acerca do passado-presente-futuro.

Na sexta-feira, 3 de outubro, a oficina ministrada pela artista foi um ensejo para nós, estudantes, vivenciarmos no corpo aspectos da Techni’ka e do bigidi assistidos durante o espetáculo; explorando os diferentes apoios dos pés, transferência de peso e sequências de movimento. Sua presença no DACO – Departamento de Artes Corporais – moveu reflexões sobre técnicas de dança, seus contextos e suas tradições para refletir também sobre nossa formação na Universidade ao longo da graduação; reconhecendo e valorizando saberes historicamente marginalizados do Sul Global e abrindo espaço para vozes, tradições, corpos e modos de aprender.

Lēnablou na oficina oferecida pela Bienal Sesc de Dança no Departamento de Artes Corporais da Unicamp. (Foto de Nabor Jr).

As discussões prosseguiram por meio de um bate-papo realizado no Instituto de Artes da Unicamp, organizado pela Profª Drª Luciane Ramos-Silva, dentro das atividades do projeto Danças Críticas. A conversa abordou reflexões conceituais e experiências práticas no campo da pedagogia da criação artística, bem como a exploração dos arquivos vivos na memória da diáspora.

De maneira intimista, os alunos de graduação e de pós-graduação puderam refletir sobre a metodologia Techni’ka, seus conceitos ligados ao território guadalupense que articulam corpo, memória e ancestralidade.

Durante o encontro, Lēnablou teceu valiosas conexões com a filosofia de Edouard Glissant, ao evocar como o caos e a instabilidade entrelaçam processos decoloniais no Caribe e, em especial, à prática do bigidi.

Bate-papo com Lēnablou, traduzido pelo estudante Dieumettre Jean, no Instituto de Artes da Unicamp, organizado pela Profª Drª Luciane Ramos-Silva. (Foto de Elaine Nogueira).

Certamente, a presença desta grande artista foi uma oportunidade única para o público da Bienal e, em especial, para os estudantes do curso de Dança. Abriram-se os horizontes para equilibrar e desequilibrar ideias, danças, técnicas, coreografias e modos hegemônicos de existência. Ecoará sempre em nossas danças um desejo pelo bidigi!

Lēnablou e estudantes na oficina oferecida pela Bienal Sesc de Dança.

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¹ Afro-Fem é a sigla para Afro-Feminist Performance Routes, uma residência de pesquisa, criação artística e performance que acontece no Collegium for African Diaspora Dance (CADD) da Duke University.

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