O tratado de dança mais antigo do mundo e o que podemos aprender com ele
Na foto: Fernanda Veloso, Julia Fonseca e Alice Mauro | Fotógrafa: Ludmila Loureiro

 

O mundo todo tem voltado os olhares para o tratado mais antigo de artes cênicas do mundo – o Natya Sastra, que podemos traduzir livremente como “escritura da arte performática”. A data de sua composição, bem como seu autor, são temas controversos. O texto é de origem indiana, e é um fato de concordância geral que a maioria das datações dos textos antigos da Índia foram feitas de modo arbitrário pelos invasores e colonizadores europeus. De qualquer modo, alguns pesquisadores sugerem que ele tenha sido escrito por volta do séc. IV a.C.

Da minha parte, porém, acredito que se pretendemos ter uma atitude verdadeiramente decolonial, é íntegro vermos o que a própria tradição de onde o texto vem tem a dizer sobre o assunto. E, para nossa sorte, o texto fala sobre isso. O Natya Sastra afirma que a arte dramática vem para esse mundo no ciclo de tempo chamado tretā-yuga. Isso significa o período entre 2,5 a 1 milhão de anos atrás. Apenas seu registro teria ocorrido no início da época atual, a kali-yuga. Tal yuga, ou ciclo universal,teve seu início no ano 3.102 a.C. Assim, seu registro pode ter se dado por volta desta época, ou mesmo um pouco antes dela iniciar. Afinal, segundo várias escrituras indianas, o conhecimento oral passou a ser registrado um pouco antes desse ciclo com o intuito de evitar a tendência à deturpação do conhecimento oral causado pelo declínio da memória, dentre as outras características desta época.

Seja como for, o que temos é que a maioria dos autores como, por exemplo, o importante pesquisador Manmohan Gosh, relata que, sem dúvida alguma, dadas as evidências, o Nāṭya Śāstraexiste desde o séc. II d.C., mas sua tradição pode ser traçada a um período tão longínquo quanto os anos 100 a.C.

A autoria do Nāṭya Śāstra também não encontra unanimidade. O texto é assinado por Bharata. Mas muitos afirmam que este é um nome genérico, que significa “ator”. Assim sendo, o Nāṭya Śāstra poderia não teria sido composto por uma única pessoa de nome Bharata, mas por várias pessoas.

Após essa breve contextualização, o que nos interessa é que este tratado, além de lidar com uma série de assuntos como música, poesia, figurino, a construção do local para espetáculos e outros, descreve movimentos matriciais, chamados karanas. Esses movimentos são usados tanto para a expressão geral da dança, de modo abstrato, quanto para transmitir diversos sentimentos e histórias. Eles têm vários elementos que os constituem, os bhedas. Considerando os membros maiores e menores do corpo, esses bhedas são de uma abrangência imensa, um complexidade encantadora e um nível de detalhe impressionante,  trazendo movimentos de cabeça, olhos, tronco, coxas, pés e até mesmo sobrancelhas e pálpebras, entre outros.

Outros elementos muito importantes que os compõem são os hastas, os movimentos das mãos, que incluem também movimentos de punhos e braços, de modo geral, pois reverberam por todo o corpo. Eles são divididos em nrtta hastas, que são usados para a dança abstrata, e abhinaya hastas, que contam histórias. Esses, por sua vez, se dividem em asamyuta – que podem ser feitos com apenas uma mão, e samyuta – que necessariamente precisam das duas mãos para serem executados. E, a partir daí, uma série de possibilidades de uso foram atribuídas a cada um deles, os chamados viniyogas, que constituem um idioma em si!

O outro elemento são os caris, os deslocamentos pelo espaço. Eles se dividem em bhumi caris, nos quais os dois pés sempre estão mais próximos do chão, e akasha charis, nos quais um dos pés está sempre longe do chão.

A combinação dos bhedas ou movimentos das diversas partes do corpo, junto com as mãos e os deslocamentos, formam os karanas, que totalizam 108, mas que podem ser feitos de diversas maneiras e a partir dos quais outros movimentos podem derivar. Além deles, o texto também sugere angaharas, que são combinações de karanas, formando pequenas sequências coreográficas.

O treinamento e a consciência corporal que a prática dos bhedas, hastas, caris e karanas propiciam, sua beleza e sua importância histórica têm atraído pessoas do mundo inteiro para o seu estudo. Por ser um estudo bastante complexo e por ser originário de um povo tão antigo e com cultura tão rica, é necessário um bom conhecimento do idioma original do texto – o sânscrito -, bem como um conhecimento dos textos que o comentam, do contexto cultural do qual se origina e um entendimento profundo de suas bases teóricas e até mesmo filosóficas para se aventurar pela execução e estudo desses movimentos.

Os dois pesquisadores que têm dedicado sua vida e se tornaram referência em Natya Sastra são a Dr. Padma Subrahmanyam e Piyal Bhattacharya. Na pesquisa deles, alguns movimentos foram reconstruídos de modo igual ou muito parecido, enquanto que outros apresentam maior divergência. Isso ocorre porque a Dr. Padma Subrahmanyam procura preencher as lacunas das descrições do texto a partir dos estudos das esculturas dos movimentos, enquanto que Piyal prioriza fazer tal reconstrução apenas através de outros textos que comentam o original, bem como a partir da busca do reflexo de conceitos filosóficos na expressão do movimento. Em todo o mundo, até o momento, existe apenas um trabalho de comparação dos estilos dos dois pesquisadores e de treinamento em ambas as interpretações, que é o trabalho da Natya Yoga Brasil. Isso porque não há pessoas nem mesmo na Índia que tenham estudado dentro das duas linhagens e que, portanto, possam fazer esse trabalho tanto comparativo quanto combinatório.

Com alguns poucos estudantes na Índia e pouquíssimos pelo mundo autorizados a propagar o ensino dos métodos que eles desenvolveram de abordagem e prática da arte do Natya Sastra, e pela dificuldade em ser aceito como estudante deles, esses movimentos ainda são raros, comparados com os movimentos dos diversos estilos de dança que conhecemos. Mas o interesse mundial por ele tem crescido cada vez mais e seu uso tem se expandido em diversos contextos, tanto na dança, quanto no teatro, quanto uma forma de yoga, treinamento físico, prática espiritual e de desenvolvimento pessoal através do movimento como uma forma de arte contemplativa.

Kamalaksi Rupini

Kamalaksi Rupini

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Dançarina, professora, pesquisadora, coreógrafa e atriz, dedicada às artes, especialmente à dança clássica indiana. Com licenciatura plena em Artes Cênicas pela UFMG, também completou lá seu Mestrado em Artes. Desde a infância e ao longo da vida estudou ballet clássico, dança contemporânea, contato-improvisação, dança de salão, dança do ventre, capoeira angola e dança-teatro. Se apresentou nos maiores e mais tradicionais festivais da Índia e em outras partes do mundo, recebendo títulos importantes, como o prestigiado Nritya Ratna (“a joia da dança”) e sendo aclamada pelo público, imprensa e crítica do país. Começando o estudo da dança indiana no ano 2000, em 2007 se estabeleceu na Índia aprendendo o Bharatanatyam com a renomada Guru B. Bhanumati e aprendeu o estilo Bharatanrityam com Sraddha Prabhu Kumar. Teve a oportunidade rara de aprender também com uma devadasi (dançarina-sacerdotisa), Kanagambhujam. Tem feito pesquisas e coreografias que colocam a dança indiana em diálogo com o resto do mundo e outros estilos de dança, mantendo o respeito pela tradição ao mesmo em tempo que traz inovação e criatividade.