O amargo é fato, o doce é possível?

Estamos nos mês mais doce do ano, junho vem embalado em guloseimas e danças celebrativas em defluência das Festas Juninas, os corações apaixonados comemoram o Dia dos Namorados no clima love is in the air[1], dançando a bela canção de John Paul Young[2]. Mas em algumas situações, ou melhor, para alguns corpos, o doce só vem, talvez, depois de se provar do sabor amargo. Para reivindicar o doce que é ser livre em suas escolhas afetivas, se olhar no espelho e poder construir o corpo/identidade que se deseja o amargo tomou conta da cidade de Nova York (EUA) em junho de 1969. A Rebelião de Stonewall marcou junho como o mês do orgulho e da luta pelos direitos das pessoas LGBTQIAP+[3], os manifestantes protestaram contra a invasão da polícia nova-iorquina no bar Stonewall Inn. A interferência policial foi o estopim para a explosão de uma comunidade diariamente tolhida e punida por simplesmente serem o que desejavam ser.

Violência, ataques do Estado e da sociedade contra a população LGBTQIAP+ são questões base para a obra teatral “Anjos de cara suja: o sol é, ou deveria ser para todas” da Cia dxs Terroristxas, dirigida por Murilo Gaulês. A peça ficou em cartaz durante os meses de abril e maio de 2023. Sua estréia ocorreu no Centro Cultural Olido e posteriormente as apresentações seguiram até o final da temporada na Casa da F.U.R.I.A, espaço sede do grupo localizada na zona norte da cidade de São Paulo.

A primeira ação artística da Cia data de 2016, origina-se de uma inquietação cujo a arte é encarada como estratégia de revolução para a criação de lutas e reivindicações para as pautas e direitos das pessoas LGBTQIAP+. Em 2018 o foco da Cia passa a girar em torno das questões que permeiam pessoas trans em situação de rua e/ou sobreviventes ao sistema prisional. As artistas em cena de “Anjos de cara suja: o sol é, ou deveria ser para todas” são duas mulheres trans e uma pessoa não-binária sobreviventes ao sistema prisional.

A inspiração da obra parte do livro “Anjos de Cara Suja: três histórias de crime, prisão e redenção” da pesquisadora, educadora, abolicionista penal Walidah Imarisha (2023), com dramaturgia de Ligia Souza. O primeiro contato que a peça estabelece com o público através da cenografia é doce. Ao pensar em prisão, no imaginário popular pode-se fabular um cenário permeado por grades, paredes sujas, ambientação escura. Ao adentrar no cenário nos deparamos com signos que remetem ao espaço carcerário como o espelho em moldura laranja unidos para formarem cortinas, os uniformes: camisa branca e calça bege, como cantado por Racionais Mc’s “Vi Jesus de calça bege e o diabo vestido de terno”[4]. Porém, mesmo evocando o espaço de violência, a cenografia envolvia o público, não se pecou pelo exagero de forçar a plateia a entrar em uma prisão.

Todavia o amargo, necessário, ganhou presença com as artistas Carla Mendes, Ema Alves e Savannah Conceição. Para além de compartilharem suas histórias, em cena duas mulheres trans e uma pessoa não-binária que sobreviveram ao sistema mais cruel desenvolvido pela humanidade. A dramaturgia abordou passagens e memórias de suas vidas na prisão, mas seus corpos em cena com suas movimentações particularmente ariscas e afrontosas trouxeram para a obra o amargo que propôs a reflexão e indagação do nosso papel enquanto sociedade diante daquelas vidas, como bem mencionado durante a peça as situações explanadas também são problemas nossos.

Na obra encontramos canções, desabafos, lutas, incompreensões, alegrias e muita, mas muita força de vida que emana dos movimentos de corpos que foram e são marginalizados. Durante a apresentação não foram presenciados nenhum movimento que remetesse ao acanhamento ou vergonha, em sua maioria eram vigorosos, enérgicos, inclusive nos momentos onde as frases eram violentas e diretas, seus corpos continuavam intactos com movimentações grandes, lineares e diretas, tão diretas que nos davam socos de realidade.

“Anjos de cara suja: o sol é, ou deveria ser para todas” estabeleceu fissuras, com doses doces e amargas, a peça provocou emoções e questionamentos. Entretanto o gosto amargo continua, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, temos a 3ª maior população carcerária do mundo, estática que deveria envergonhar todas as pessoas que habitam e/ou se dizem brasileiras. Mas esse amargo chegou? Chegou para quem? Será que um dia as pessoas LGBTQIAP+ sobreviventes ao sistema prisional conseguiram saborear os doces da vida, ou ficaram fadadas a viverem no limbo do amargo?

 

*Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

REFERÊNCIAS

Cia dxs Terroristxas – https://www.ciadxsterroristas.com/

Reportagem: Brasil é o país que mais mata pessoas trans pelo 14º ano consecutivo

Disponível em: acesso em 16/06/2023.

Reportagem: Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo. Disponível em: acesso em 16/06/2023. 


[1] Tradução: O amor está no ar.

[2]  John Paul Young (1950), cantor australiano. Ganhou notoriedade mundial com a canção “Love is in the air” de 1978.

[3] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queers, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, +: mais gêneros e sexualidades.

[4] A vida é desafio (2002), música do grupo brasileiro de rap Racionais Mc’s.

Nailanita Prette

Nailanita Prette

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Mestre em Artes – linha de pesquisa Artes da Cena, pela UFMG; licenciada e bacharel em Dança pela UFV; técnica em Dança pela ETAM Santa Cecília. Artista das Artes do Corpo com ênfase em Dança Contemporânea e Performance, com trabalhos autorais e com artistas parceiros. Professora de Dança e Artes na rede pública de ensino e no curso técnico de Artes Visuais, ambos da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Pesquisadora em Dança e Teatro Físico com interesse nas temáticas: Analise do Movimento, Técnicas Corporais, Poética do Corpo, Processo Criativo em Dança, Improvisação em Dança e Modos de Mover Contemporâneos. Se interessa na teorização da Dança a partir da prática, do corpo em movimento, uma das vertentes de trabalho que vem se arriscando é a Critica em Dança.