Esse Mal Falado Carnaval

Todo ano, nos dias que antecedem as datas de Carnaval se ouve as mesmas reclamações: Carnaval é tempo perdido, dinheiro jogado fora, frequentado e feito por pessoas sem consciência política. Que todo o dinheiro e esforço investido nele é mal utilizado. Que se trata de um bando de arruaceiros desarvorados que insistem em existir. Muito se escuta também que se trata de uma tal da “festa da carne” que precede a quaresma por meio dacarnis levale (a retirada da carne como alimento dos cristãos). Eu sempre leio e ouço discursos terríveis contra o Carnaval, mas movida pela folia que me arrasta pelos bloquinhos, nunca realmente nem tentei argumentar. Mas esse ano é diferente e a quarentena me colocou em casa num sábado à noite de Carnaval. Então, compartilho algumas ideias que podem interessar a quem desdenha de nós, os terríveis carnavalescos.

A origem do Carnaval possivelmente se confunde com a própria origem do teatro e seus famosos “ditirambos”, cortejos nos quais sacerdotisas de uma época matriarcal dançavam danças religiosas para uma Deusa Mãe, responsável pela Natureza, pela fertilidade e pela fartura dada pela terra, possivelmente, entre os anos de 4000 a 2000 a. C. Depois da formação da Grécia e o início do patriarcado, o homenageado passou a ser Dionísio, também como deus da Natureza, da fertilidade e sim, do vinho. O cortejo dançava, tocava e cantava em coro entorno de um carro naval, mais exatamente, um barco adaptado com rodas, ou carrum navalis, que percorria diversos povoados, conclamando os aldeões à comemoração e ao êxtase, que era a maneira que eles conheciam de se encontrar com o divino. 

Tem um livro lindo do Harvey Cox cuja tradução do título em português ficou “Festa dos Foliões”, mas ao pé da letra seria “Festa dos Loucos” (La Fête des Fous), um título bem mais interessante. O livro fala sobre uma espécie de Carnaval que acontecia na Idade Média na Europa e no qual todo o povo participava, até os padres! Todos se mascaravam, se fantasiavam e saiam cantando e brincando, satirizando leis e debochando dos costumes mais rigorosos e ordeiros. Cox nos conduz num desfile pelo tempo, apresentando a importância de uma cultura se permitir zombar de si mesma, periodicamente, e assim promover a crítica e autocrítica. Festividade e fantasia são tão antigas quanto a própria humanidade e como ele mesmo observa, exclusivamente humanas. 

É interessante perceber a proibição da tal Festa dos Loucos com a repressão da Igreja na Idade Média e seu desaparecimento com o declínio do Feudalismo e ascensão do Capitalismo e da Revolução Industrial cumprindo um destino de sobriedade, de produtividade e de um investimento de tempo que visa a eficiência e a finalidade. Um verdadeiro culto ao trabalho.

O ser humano é visionário e criador de sonhos e de seres que povoam a imaginação. E é festivo por motivo de sobrevivência. Porque é no folguedo que rompemos a rotina do trabalho, que comemoramos comendo e repartindo o alimento, bebemos, demarcamos as mudanças – talvez não mais as mudanças de estação do ano masagora as nossas próprias transformações, vitórias, homenagens aos humanos e à divindades, os nascimentose os aniversários. Possivelmente, antes de falar e certamente antes de escrever, já dançávamos. Dançar, tocar, cantar, desenhar, brincar, jogar, simular, ritualizar – tudo isso tem uma origem comum, uma origem pré-histórica que vai se transformando e reinventando ao longo dos períodos e das diversas culturas.

As festas populares são, ainda hoje, lugares de encontro. Possibilidades de acontecimento. Encontrar o outro é sair de si, sair das mesmas opções e fazeres em busca da relação. As festividades nos ajudam a relacionar passado, presente e futuro, já que elas são expressão da experiência, da vivência, da autêntica possibilidade de nos conectarmos. A mais eficiente forma de dominar um povo, sabemos, é apagar sua cultura. Culpabilizá-la. E o Carnaval sofreu apagamentos, proibições e inúmeros atos higienistas ao longo da sua história. No Brasil, um dos países no quais ele é mais comemorado, o Carnaval sofre ainda com o racismo, já que essa festa se fortaleceu e se mantém até hoje devido à ativa participação dos afrodescendentes que o recriou com a potência da sua gigantesca cultura musical, percussiva e de dança, além da sua sabedoria na ocupação do espaço público para a manifestação dos folguedos.

O discurso de que o Carnaval não presta não é de hoje. Se engana quem pensa que esses dias de folia são de negação frívola da realidade. Eles são a verdadeira constituição de um espírito lúdico criativo coletivo. Há ali uma expressão da confiança de que somos capazes de nos comunicar fora dos convencionalismos. De criar novos horizontes. De manifestar identidades e subjetividades. Há mais superficialidade na negação da importância do Carnaval do que nos rostos pintados de quem participa dessa festa pagã. A razão mais arrojada está acompanhada da mente mais criativa. “A abertura do homem para o futuro realmente novo depende se sua capacidade de fantasia”, afirma Harvey Cox.  Afinal, o devaneio, o festejo, a capacidade imaginativa, a fantasia não são meras distrações ou alienações. Esse ano não tem Carnaval. Obviamente não é o momento certo pois precisamos nos cuidar e isso agora é imprescindível. Mas ocuparemos as ruas novamente assim que a situação de saúde pública permitir. Pois como afirma Harvey, para nos tornarmos plenamente humanos precisamos aprender, de novo, a bailar e sonhar.

*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Bibliografia:

COX, H. A festa dos foliões: um ensaio teológico sobre festividade e fantasia. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 1974.

KERENYI, CARL. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. São Paulo: Ed. Odysseus. 2002

Cibele Ribeiro

Cibele Ribeiro

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Artista da dança independente: bailarina, improvisadora, coreógrafa, preparadora corporal, diretora artística, pesquisadora, educadora do movimento, docente, produtora e amante da fotografia, da poesia e da natação. Atua em trabalhos autorais solo e coletivos como bailarina e como encenadora, além de possuir produção em videodança como bailarina, diretora e orientadora artística. Dirigiu mais de 15 espetáculos de grupo. Contemplada com o Prêmio PROAC LAB por Histórico de Realização em Dança no estado de São Paulo (categoria coreógrafos e diretores), além dos Prêmios Cultura Presente (2021) e Trajetória Cultural (2020), ambos no município de Campinas, SP. Possui produção intelectual publicada em sites acadêmicos e não acadêmicos e longa atuação na formação livre e profissionalizante em Dança (Oficinas Culturais/Poiesis, Escola de Artes Augusto Boal, Programa Vocacional, Programa de Qualificação em Dança/Poiesis). Avaliadora/Parecerista de Projetos Culturais de diversos estados e municípios desde 2015.