Crédito das Fotos: Devotees. Foto Allan Diniz
Por Renata Máximo Guidetti
O solo Devotees, interpretado por João Paulo Lima e sob a direção de Clarissa Costa, abordou o devoteísmo e suas distintas formas de manifestação, integrando a programação da Bienal SESC de Dança. Para quem não conhece o significado da palavra, devotees são pessoas que se sentem atraídas sexualmente por pessoas com deficiência, geralmente amputadas e cadeirantes. Para João Paulo, colocar-se em cena com uma ambivalência erótica reafirma seu direito à sexualidade e ao desejo. O solo partiu de sua própria compreensão, ao longo dos anos, acerca do fetiche em torno de sua imagem. Para o performer, ser um objeto de desejo o empoderava como corpo dissidente, socialmente tratado como assexual.
João Paulo Lima nasceu no Ceará e transita entre diferentes formas artísticas como as da cena, do audiovisual e a literatura. Doutorando em dança pela Universidade Federal da Bahia, é Mestre em literatura e técnico em dança contemporânea. É ativista dos direitos das pessoas com deficiência (PCD) e colaborador do coletivo Vale PCD, uma organização não governamental que reúne a pauta da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros) e PCD no Brasil com ações de educação e socialização. Participou de residências artísticas dentro e fora do Brasil, dentre elas: Candoco Dance Company; Groi Gran Dance Company, Megapie Dance Company e Mundos possíveis. Com participação em diferentes espetáculos, diz que se arrisca no jogo entre dança, teatro e performance.
O espetáculo iniciou com o performer colocado no palco e a informação sobre o significado da palavra devotees, a qual surgiu acessível no formato visual e auditivo. O figurino se destacou pela composição do blazer de lantejoulas prateadas com as muletas canadenses e prótese direita de articulação do quadril, ambas também prateadas. Com movimentos lentos, sinuosos e sensuais de todo o corpo, as mãos envoltas por uma luva ganharam destaque no momento que o performer se colocou de costas para o público. A partir da sombra da silhueta refletida no fundo, e lado esquerdo do palco, o apoio da mão de uma de suas muletas, transformou-se no falo masculino. Permeada por murmúrios de prazer, a cena disse sobre as carícias possíveis nesta parte do corpo até o gozo.
O silêncio foi quebrado com a entrada do músico Felipe Giffoni e seus instrumentos, a tumba e o trompete, o qual compuseram todo o clima do espetáculo. O som, “lembrou” a trilha sonora da pantera cor-de-rosa e o instrumento, de cor dourada, compôs com os apoios do artista a estética da cena. A partir de uma partitura sonoro coreográfica, música e performance, convidaram o público a participar do espetáculo por meio de símbolos do fetiche como: gel lubrificante, sorvete e a uma vela acessa. O público reagiu e interagiu compondo a cena.
Ao retornar ao palco, o performer, a partir da sua dança, percorreu o espaço cênico, transitando entre os níveis, e explorando os seus movimentos a partir das linhas, mudanças de direções, apoios e deslocamentos possíveis para o seu corpo. Em sua movimentação ocupou o chão. A partir de movimentos virtuosos, criou formas de apoiar-se e deslocar-se neste nível do espaço, demonstrando a potência de seu corpo na dança.
Strip! Ao despir-se, retirou sua prótese e deixou as muletas no chão. Permaneceu em cena com um tapa sex e uma “meia pele” que cobria o seu tronco, sobreposta por faixas largas, que desenhavam um colete, tocou-se e, tocou a sua própria amputação. A parte final do espetáculo foi composta por um vídeo dividido em duas partes. A primeira parte trouxe a fala de devotees de diferentes países e seus fetiches e a segunda parte, cenas de sexo entre o performer e um companheiro.
O espetáculo foi um convite a repensar a deficiência e sexualidade. A intenção foi que outros corpos, com deficiência ou não, pudessem, assim como o performer, desejar ou sentir-se desejado sexualmente, desmistificando a sexualidade do corpo deficiente. Ambos, dança e sexualidade, são estruturas corponormativos que pouco consideram o corpo deficiente. Portanto, o espetáculo rompeu ao ressignificar o corpo com deficiência, na dança e em sua sexualidade, demonstrando as suas potencialidades. Cabe ressaltar, que este foi um dos poucos espetáculos acessíveis a pessoas com deficiência.
* Renata Máximo Guidetti é mestre na área de Atividade Física Adaptada pela Universidade Estadual de Campinas (2023), e dentro da sua formação destacam-se a especialização em Laban no Instituto Sedes Sapientiae (2007) e pós-graduação latu senso em Arte Integrativa na Universidade Anhembi Morumbi (2003). Atuou como bailarina e professora do INTEGRARTE corpo de dança e da Escola Municipal de Arte-Educação Integrada Paulo Bugni (2000-2008) ambas em São Bernardo do Campo, como professora de dança e gestora em unidades do SESI (1998-2021) no grande ABCD, pesquisadora de campo no ponto de cultura “Bailando na Cidade” em Diadema (2007), atriz e na preparação corporal nas peças “Primeiras estórias” e a “Tempestade” com o Teatro da Transpiração em Santo André (2006-2007). Atualmente é aluna em duas disciplinas da pós-graduação e seu interesse de pesquisa é sobre dança e pessoa com deficiência.
** Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 13a. Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.
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