Crédito das Fotos: Marietta Baderna no centro cercada por poses de balé. Imagem em domínio público.
No dia 8 de março se comemora o Dia Internacional da Mulher. A data celebratória foi escolhida devido ao ato de protesto, ocorrido em 1917 na Rússia, na qual mulheres lutavam pelo voto e por seus direitos na sociedade. Muito antes da data em questão, o direito de escolha das mulheres passava longe de ser respeitado e, infelizmente, ainda hoje não há igualdade entre gêneros. Na sociedade ocidental, a sexualidade feminina e seus desejos, sejam ligados a profissões ou modos de existir, são limitados e julgados. Mulher não pode se vestir de tal forma, mulher não pode trabalhar em certas profissões, mulher não pode apenas ser. Caso deseje subverter a norma, é mal vista. A ruptura com a ordem é interpretada como baderna. De acordo com o dicionário Aurélio, baderna é sinônimo de matulagem, pândega, súcia, rolo, confusão e briga, palavras que possuem uma conotação negativa, nos fazem pensar em um ambiente hostil, onde o caos está instalado. O curioso é que sua origem provém de um nome próprio, da bailarina italiana Maria – ou Marietta – Baderna. Apesar de sua origem e formação européia, Baderna firmou residência no Brasil e foi alvo de adoração e escárnio em nossas terras.
A bailarina aportou no Brasil em 1849, junto ao seu pai, a Companhia Lírica Italiana e seu corpo de baile. Na época, a Itália enfrentava um clima político complicado e seu pai era um opositor ao regime em voga, tendo participado de manifestações. Assim, decidiram buscar novas oportunidades em um outro país. Antes de cruzar os mares, Baderna já fazia sucesso nos palcos europeus como bailarina. Começou seus estudos, de acordo com seu biógrafo, Silverio Corvisieri, com doze anos junto ao maestro de dança Carlo Blasis. Na época era raro um pai ligado a classe burguesa e classe alta permitir ou, mesmo, incentivar seus filhos no caminho das artes. Bailarinas e mulheres estudante de dança, eram associadas à prostituição. De acordo com Corvisieri, o ônibus que transportava as alunas de Blasis era conhecido como “carrozon de pecca” (carruagem do pecado). Mesmo assim, Baderna e as alunas de Blasis faziam sucesso nos principais palcos da Europa, chegando a performar no Scala de Milão e no Convent Garden, em Londres. Marietta dançava balé clássico mas tinha conhecimento de danças folclóricas europeias, algo que reverberou em seu interesse nas danças sociais brasileiras, especialmente o lundu.
Uma questão interessante levantada no artigo “O Teatro São Pedro de Alcântara, Maria Baderna e algumas memórias do Rio de Janeiro do século XIX” (2011) de Robson Dutra e Vera Aragão, é como os jornais da época identificavam Marietta. Por vezes bailarina, em outros momentos dançarina, talvez o equívoco acontecesse devido à tradução de termos mal feita. Compreendido dentro do termo bailarina estavam as praticantes do balé clássico, quem se encontrava no espaço cênico, atuando profissionalmente nos teatros e palcos e com maior destaque nos espetáculos. Dançarinos faziam parte do corpo de baile e também o termo utilizado para praticantes de danças não cênicas. Baderna era uma bailarina e uma dançarina. Sua prática no palco juntava elementos que a caracterizavam dentro das duas possibilidades. Ao juntar as duas identidades foi, em diferentes momentos, aclamada por seu balé e julgada por sua dança.
Com sua apresentação no balé “O Lago das Fadas”, em 1849, foi aclamada pelo Jornal do Commercio e pelo Correio Mercantil. Junto com o apoio da crítica, o público também se mostrou entusiasta e admirador da bailarina italiana no Brasil. Seus admiradores ganharam o apelido de “baderneiros”, eram fãs fervorosos, levavam flores em suas apresentações e, no espaço da rua, frequentavam festas e dançavam com Maria.
Na rua, Maria conheceu o lundu. Dança de origem africana, o lundu era praticado por pessoas escravizadas no Brasil. Praticada fora do espaço cênico, é uma dança social, acontece para promover o encontro e lazer de seus praticantes. Com os pés plantados no chão e movimentos de quadril, muito difere do encontrado nos palcos da época. Com curiosidade e desejo de experimentar novas possibilidades, Baderna se encanta com o lundu e decide levá-lo para o palco, a dançarina se encontra com a bailarina e Maria se apresenta. A imprensa não mostrou a mesma apreciação quando esse encontro se deu. Apesar de louvar as habilidades de bailarina de Baderna, quando ela leva o lundu – ou uma adaptação da dança – para o teatro, a acusam de hiper-sexualismo, de falta de decoro e que o público se dividia entre homens – lascivos em desejo – e mulheres – coradas com vergonha. Um trecho do artigo “Os aplausos à Mlle Baderna e à Sra, Moreau” de 1851 revela como foi a recepção da mídia:
“Em um teatro, onde essas dançarinas são admitidas e tão entusiasticamente festejadas, parece não se deverão prescrever por torpes e desonestos os nossos lunduns. O fato mais rebolado, o bahiano mais sacudido, podendo ofender tanto o pudor, e por outra parte explicar tanta paixão erótica, acender tantos fogos libidinosos, como a presença de duas mulheres oferecendo aos ávidos olhos dos homens as formas arredondadas e graciosas de todo o seu corpo desde os pés até a cabeça, com toda ilusão ótica de uma completa nueza? Qual será o passo, o meneio, o mórbido requebro do mais lascivo lundum, que comparar se possam às passagens, em que a delicada Baderna, ligeira qual uma sílfide, escancara as pernas, como se se partir em duas? E note-se bem, que essas posições é que crepitam as palmas, os aplausos tornam-se quase um furor! Estarei em erro, mas quer me parecer que nenhuma senhora que tem frequentado o teatro, e visto essas danças, terá deixado de sentir assomarem-se lhes nas faces as rosas do pudor. E venham-me cá pregar certos românticos empertigados que os teatros são escolas de moral”.
Mesmo com a falta de apoio da crítica e do público no Rio de Janeiro, Baderna não se deu por vencida e ainda apresentou sua coreografia com base em lundu no Recife.
Sua postura desafiadora teve consequências em sua caminhada. Deixou de ser programada em teatros e seu nome foi sumindo dos jornais. O resto de sua trajetória é difícil de se precisar, as informações mais acuradas dão conta que seguiu dando aula de balé no Rio de Janeiro, a sua última cidade em vida.
Maria Baderna construiu relação entre a dança erudita e a dança popular. Buscou a liberdade em sua prática artística. Entre o bailar e o dançar, Baderna mostrou as influências pulsantes em seu corpo. Por que se conformar a um estilo de dança? Por que seguir as normas impostas? Ela almejava a liberdade no palco, a possibilidade de mostrar a dança da rua, a dança folclórica e a dança acadêmica. Por seu ato revolucionário, pagou com o ostracismo ao final de sua vida e com duras críticas proferidas pela imprensa da época. Entretanto é graças a figuras como ela, Josephine Baker, Mercedes Baptista e Eros Volúsia – para citar apenas algumas – que a dança se transforma e torna-se palco de expressão da liberdade das mulheres e de seus desejos.
Para saber mais sobre Maria Baderna:Maria Baderna: a Bailarina de Dois Mundos, de Silverio Corvisieri
Bibliografia:
Dutra, R., & Aragão, V. O Teatro São Pedro de Alcântara, Maria Baderna e algumas memórias do Rio de Janeiro do século XIX. interFACES [Online], 15.2 (2011): 97-115. Acesse em: https://revistas.ufrj.br/index.php/interfaces/article/viewFile/30085/16981
Rabetti, M. de L., & Alcure, A. S. (2015). Contribuição dos estudos de caso e da pesquisa indiciária para a história do espetáculo: o lundu que Maria Baderna teria dançado em Recife. Sala Preta, 15(1), 70-86. Acesse em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/96073/98282
Soares, F. de M (2016). Mulheres substantivas – Olympe de Gouges e Marietta Baderna: o papel subversivo das artes no contexto dos direitos humanos em movimento. Revista Estudos Legislativos. v. 10, p. 33-60, 2016. Acesse em: https://revistas.ufrj.br/index.php/interfaces/article/viewFile/30085/16981
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