Crédito das Fotos: Ecole des Sables - Senegal - Ritual Ndeup. Foto Rui Moreira.
Publicaremos aqui uma série de artigos/ reflexões sobre o tema arte negra, divididos em quatro partes ou capítulos, para que possamos acompanhar o assunto por diversas visadas. Esta iniciativa é uma das ressonâncias da minha inquietação na condição de investigador de culturas, artista coreógrafo, dançarino, diretor de movimento e pensador sobre o fazer artístico no campo da dança. Discutir a atuação e a inserção social das danças negras contemporâneas no continente africano, nas diásporas africanas e nos demais pontos do planeta tem se tornado mais e mais um foco. Desde o ano de 1993, quando da criação da Cia. SeráQuê? em Belo Horizonte, MG, venho agregando pessoas e sendo agregado por outras, em núcleos que discutem e confrontam informações e impressões sobre a arte que se inspira no aspecto matricial do continente africano subsaariano e que espelha identidades múltiplas no mundo contemporâneo. |
Capítulo IV – Será que é necessário falar de identidade para falar sobre arte?
DANÇA AFRO NO BRASIL
Veja mais: CAPÍTULO I – CAPÍTULO II – CAPÍTULO III
No Brasil, em linhas gerais, as danças nascidas das matrizes africanas são reconhecidas a partir do prefixo Afro. Espelhadas na história de sua descendência africana as danças afro-brasileiras por princípio remontam uma cosmogonia a partir de valores espirituais que refletem uma corporeidade que é transmitida de geração em geração. De forma ritualizada esta dança é normalmente embalada pela percussão de tambores e outros instrumentos construídos com material encontrados nos “quintais” como galhos de arvores específicas, cabaças, cabeleira de animais, couros variados (carneiro, boi, cobra, coelho, etc…), tampas de garrafa, arames, cipós, cordas e são normalmente montados usando o calor de fogueiras para forja dos materiais. Todos estes instrumentos são construídos a partir de tecnologia elaborada e transmitida através dos tempos.
Esta dança remete os corpos a uma relação com tradições do continente africano, seja por memória ancestral ou por impulso mimético. Existe uma grande quantidade de danças “afro-brasileiras” ligadas a rituais e festas – leia se, manifestações populares coletivas. Divinas ou profanas estas danças são um dos eixos da estruturação cultural do país e delas derivam danças que acompanham vários ritmos populares.
Cito algumas: Capoeira, Caboclinho, Maracatu Rural, Samba de Parelha, Samba de Roda, Tambor de Creola, Coco de Zambê, Batuque Paulista, Jongo, Boi Bumbá, Mestre Sala e Porta Bandeira, Candomblé, Tambor de Mina, Maracatu, Moçambique, Coco Alagoano, Reisado, Lundu, Umbigada e mais um infindável número de danças, ritmos e musicalidades. Alguns que continuam sendo reconhecidos e catalogados.
Mesmo fazendo parte da urbanidade, estas danças ocupam as periferias ou os ambientes rurais. O aprendizado e a apropriação artística neste caso demandam mais do que uma aproximação. Demanda uma imersão que produzirá além de aprendizado de uma coordenação motora específica, um sentimento de respeito aos signos deste legado.
A partir dos anos 1930, influenciada pelo movimento sociocultural negro norte americano, surge no Brasil uma dança com estética cênica híbrida protagonizada por artistas negros.
As pesquisas da norte americana Katherine Dunham de base artística-antropológica sobre danças africanas, as danças presentes no Voudou (ramo de uma tradição religiosa teísta-animista baseada nos ancestrais, que tem as suas raízes primárias entre os povos Ewe-Fon da África Ocidental, no país hoje chamado Benin, anteriormente Reino do Daomé) que se manifestava no Caribe e nas danças patrimoniais religiosas do Candomblé e outras religiões afro-brasileiras no Brasil, despertou interesse em artistas brasileiros. Alguns desses tiveram acesso direto com a técnica Dunham e desenvolveram espetáculos e métodos de ensino. Foram responsáveis pela difusão da recém nomeada “Dança Afro” pelos palcos de teatros oficiais, por palcos de espaços alternativos como clubes e cassinos e pelas praças e ruas.
As pioneiras Eros Volúsia, Mercedes Batista fizeram discípulos que seguem seus pensamentos estéticos até hoje. Marlene Silva, Marcelo Midanga, Maurici Brasil, Carlinhos Bata, Cristina Matamba, Irineu Nogueira, Charles Nelson, Carlos Afro, Evandro Passos, Márcio Valeriano, Augusto Omolu, formam uma sequência de nomes que desenvolveram uma linguagem própria sobre a corporeidade específica da Dança Afro
A Dança Afro como estilo coreográfico ganha no Brasil, nuanças culturais/geográficas inevitáveis, o que agregou valores a esta expressão. Alguns coreógrafos brasileiros desdobram a dança afro em distintas expressões:
Dança Afro – Primitiva – inspirada nas danças animistas tribais da África negra
Dança Afro – Brasileira – mistura ao estilo Afro ao balé clássico, às danças modernas, às danças patrimoniais negras, indígenas e algumas danças de incorporação advindas de manifestações religiosas de matriz africana.
Dança Afro – Folclórica – influenciadas pela mitologia, contos e lendas populares, lendas e mitos da cultura popular brasileira.
Dança Afro – de Salão – aborda as danças que se originaram de musicalidades afro-negras e ocuparam salões de festas, bailes e até grandes manifestações de rua. Ex. o samba, o axé, o maracatu, etc. Este estilo coreográfico por incorporar danças populares do Brasil, por vezes foi aclamado por alguns meios midiáticos como a “dança brasileira” por excelência.
Dança Afro – Contemporânea – A linguagem da dança afro-contemporânea é baseada em técnicas em que ritmo, pulso, senso de improvisação em grupo é forte energia de comunicação, estimula tanto o ritmo interno, que provoca o despertar de memórias étnicas e instintivas, estabelecendo uma ligação forte e ritual através do repetitivo ritmo dos tambores.
A partir destas classificações, observamos criadores interessados também em outros universos e contextos da dança artística, que exploram estas formas de dançar e organizam um vasto inventário de posturas, atitudes, gingados, manobras e procedimentos coreográficos, com o objetivo de codificar linguagens personalizadas para expressar uma Dança.
Outras conexões da diáspora…
A arte, o pensamento político, estético e social de artistas brasileiros negros espalha pelo mundo marcas de uma cultura híbrida e miscigenada. Cito: Ismael Ivo, Luís de Abreu, Rui Moreira, Cristina Moura, Ricardo de Paula, Rubens Barbot, Regina Advento, José Carlos dos Santos (Zebrinha), Carlos Dimitri, Armando Duarte, Marco Antônio Garcia, Elísio Pitta, João Carlos Ramos, Carmem Luz, Haroldo Alves, Iara Deodoro, Daniel Amaro, entre muitos outros.
A natureza da arte tem a capacidade alquímica de hibridizar processos. “Algumas pessoas argumentam que o hibridismo e o sincretismo, a fusão entre diferentes tradições culturais, são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que as velhas e contestadas identidades do passado. Outras, entretanto, argumentam que o hibridismo, com a indeterminação, a “dupla consciência” e o relativismo que implica, também tem seus custos e perigos… Stuart Hall”
Conclusão
Existe um longo caminho a percorrer para que o povo brasileiro se aproprie de sua própria trajetória. Mobilizações da sociedade para apreciação e reflexão sobre cultura e as abordagens múltiplas dos vários conceitos concernentes à diversidade, contribuem para o desenvolvimento do pensar e do fazer criativo. E tudo reforça o papel da cultura das artes como uma potente ferramenta de educação holística. Avalio que estimular esta discussão é de extrema importância para ampliar os limites das expressões da contemporaneidade neste Brasil pós- colonial e pós- escravagista (…). Afinal não existe história sem arte.
“o futuro está sempre a sua frente. ou as suas costas, cada vez que você dá meia volta.”
do filme Yaaba, de Idrissa Ouedraogo, de Burkina Faso.
Bibliografia
SASPORTES, J. (1983) – Pensar a Dança, a reflexão estética de Mallarmé a Cocteau.
Colecção arte e artistas. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa
Acogny, Germaine (1994) – Danse Africaine Afrikanischer Tanz African Dance – Editora Kunstverlag Weingarten
Martins, Leda Maria (1997) – Afrografias da Memória – Editora Perspectiva, Mazza Edições
Gilroy, Paul (2001) – O Atlântico Negro – Editora 34
Hall, Stuart (2003) – A identidade cultural na pós-modernidade – Editora DP& A
Munanga, Kabengele e Gomes, Nilma Lino (2006) – O Negro no Brasil de Hoje – editora Global.
Bião, Armindo Jorge de Carvalho (Organizador) (2007) – Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia.