Arte e Identidade

Crédito das Fotos: Ecole des Sables - Senegal - Ritual Ndeup. Foto Rui Moreira.


Publicaremos aqui uma série de artigos/ reflexões sobre o tema arte negra, divididos em  quatro partes ou capítulos, para que possamos acompanhar o assunto por diversas visadas. Esta iniciativa é uma das ressonâncias da minha inquietação na condição de investigador de culturas, artista coreógrafo, dançarino, diretor de movimento e pensador sobre o fazer artístico no campo da dança. Discutir a atuação e a inserção social das danças  negras contemporâneas no continente africano, nas diásporas africanas e nos demais pontos do planeta tem  se tornado mais e mais um foco. Desde o ano de 1993, quando da criação da Cia. SeráQuê? em Belo Horizonte, MG, venho agregando pessoas e sendo agregado por outras, em núcleos que discutem e confrontam informações e impressões sobre a arte que se inspira no aspecto matricial do continente africano subsaariano e que espelha identidades múltiplas no mundo contemporâneo. 

Capítulo I – Será que é necessário falar de identidade para falar sobre arte?

ARTE E IDENTIDADE

Veja mais: CAPÍTULO II – CAPÍTULO III – CAPÍTULO IV

No ano de 2007 em Toubab Dialaw – vilarejo de pescadores próximo a Dacar – no Senegal, aconteceu o primeiro encontro de confrontação entre África e Diásporas idealizado por Germaine Acogny, um dos mais expressivos nomes da dança moderna/contemporânea africana deste século. Esse encontro foi organizado e realizado pela Associação JANT-BI na École des Sables que é um Centro Educacional Internacional de aprendizado e difusão de Danças Tradicionais e Contemporâneas da África e das Diásporas africanas.  

Como ressonância do encontro, foi criado um núcleo de discussões que se auto intitulou – Grupo dos Sete.  Um grupo de artistas criadores, de educadores e de  investigadores das culturas das quais são meio, que decidiu discutir e trocar informações sobre as singularidades e diferenças nas abordagens da africaneidade e afrodescendência manifestada através da sua visão de dança.

Formado por Fred Bendongué na França, Laurent Longa Fo no Congo Brazzavile, Gregory Magoma na África do Sul, Nora Chipaumire – nascida no Zimbabwe residente em New York/ USA, Rui Moreira no Brasil, Lena Blou em Guadalupe e Patrick Acogny na França e atualmente no Senegal.  Esse grupo decidiu manter contato, propor ações conjuntas e desenvolver parcerias  para continuar a discutir a atuação e a inserção social das danças negras contemporâneas pelo mundo.  Lembrando que – contemporâneo – aqui neste contexto é lido pela visão conceitual da arte, mas também pelo aspecto cronológico.

Discutimos intensamente identidade pela perspectiva da arte e cultura negra observando os diversos prismas que se abrem no cruzamento destes territórios. Um dos aspectos de confrontação entre nós foi a forma como interpretamos o continente africano em nossas distintas realidades.

Pelo ponto de vista da ciência dos genes, da hereditariedade e da variação dos organismos vamos observar resultados diversos a partir da mestiçagem. Ao ler escritores e escritoras, filósofos, intelectuais e pensadores e pensadoras, Leopold Sedar Senghor, Aimé Cesaire, Leon-Gontran Damas, Édouard Glissant, Leo Froebenus, Marcel Griaule, Claude Mckay, Langston Hughes, Alain Locke, Wole Soyinka, Frantz Fanon, Sembene Ousmane, Patrick Chamoiseau, Stuart Hall, Paul Gilroy, Milton Santos, Abdias do Nascimento, Muniz Sodré, João José dos Reis, Leda Martins, Nei Lopes, Cidinha da Silva, vamos discorrer e abordar de maneira sociológica, visões cosmogônicas, como a ‘creolização’, a ‘negritude’, a ‘afrodescendência’, a ‘africanidade’, todas teorias formuladas a partir dos efeitos da dispersão da população africana pelo mundo e consequentemente da formação de novos povos, novas nações.

A cultura africana por um olhar colonialista, se fez conhecida fora da África principalmente através de avançadas tecnologias agrícolas e extrativistas praticadas no continente africano desde os primórdios. Este conhecimento foi explorado pelos povos europeus durante a colonização africana. Mais tarde em sua ânsia por conquista de novas terras e riquezas, esses povos procuraram aplicar os mesmos princípios de conquista no descobrimento do novo mundo, esse que chamamos hoje de continente americano.

Ao perceber nesse novo território condições climáticas e terras brutas tão ricas em matérias primas quanto as do continente africano, tentaram escravizar mão de obra local, mas sem grande sucesso. Por motivos diversos transformaram este caminho do novo mundo em rota para o tráfico de escravos africanos.

No Brasil, por exemplo, o tráfico negreiro foi uma atividade altamente lucrativa e legal que pagava impostos tanto para a Coroa portuguesa quanto para a Igreja Católica (dízimo). O tráfico negreiro iniciou-se oficialmente em 1559, quando a metrópole portuguesa decidiu permitir o ingresso de escravos vindos da África no Brasil. Antes disso, porém, transações envolvendo escravos africanos já ocorriam no Brasil, sendo a escassez de mão-de-obra um dos principais argumentos dos colonos.

Dentre esses negros, vieram para o Brasil os Iorubás ou Nagôs e os Geges (que inclui as etnias de Fon; Ashanti; Ewé; Fanti), os Mina e os Malês (que são povos do oeste africano muçulmano, na maior parte falantes da língua haúça), entre os quais também os Mandingas, Fulas, Tapas, Bornu e Gurunsi. Atualmente esses países são Togo, Gana, Nigéria, Costa do Marfim e Benim, onde está a “costa dos escravos”

Os Oeste-africanos constituíram a maior parte dos escravos levados para a Bahia. Pertenciam a diversos grupos étnicos que o tráfico negreiro dividia. Durante o ciclo do ouro (no século XVIII) muitos sudaneses foram levados para Minas Gerais, onde também chegaram a predominar. No século XIX foram superados pelos escravos bantos da região de Angola, Congo ou Cabinda, Benguelas e Moçambique. Os bantos foram introduzidos em Pernambuco, de onde seguiram até Alagoas; no Rio de Janeiro, de onde se espalharam por Minas Gerais e São Paulo; e no Maranhão, atingindo daí o Pará. Ainda no Rio de Janeiro e em Santa Catarina foram introduzidos os camundás, camundongos e os quiçamãs.

Assim vieram:

– Nos séculos XVI e XVII dos portos de Senegal e Gâmbia, enviando escravos da região oeste-africana principalmente para Salvador e Recife.

– No século XVIII dos portos de Mina (Guiné), Uidá (Benin), Calabar (Nigéria),Cabinda (Angola) e Luanda (Angola), enviando escravos desembarcados em Salvador e Rio de Janeiro, de onde a maior parte ia para Minas Gerais.

– Nos séculos XIX dos portos de Mina, Uidá, Calabar, Cabinda e Luanda, desembarcando principalmente em Salvador e Rio de Janeiro, indo para as plantações de café no vale do Paraíba do Sul e cana-de-açúcar no norte fluminense.

Pelo prisma da cultura, vamos observar que a estruturação das manifestações artísticas no Brasil é profundamente sustentada pelos legados africanos. Ritmos, cantos, danças, instrumentos musicais, alegorias visuais, tecnologias humanas, visões filosóficas, acento linguístico, modos de vestir, enfim, atitudes diversas que vieram com estes povos como uma prenda e que se mescla ao longo dos tempos com outras descendências, promovendo hibridismos realmente fascinantes.

“Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta. Sem isso, (…) não haveria nenhuma história. Entretanto (…) isso não deveria nos desencorajar: o deslocamento tem características positivas. Ele desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos e o que ele chama de ‘recomposição da estrutura em torno de pontos nodais particulares de articulação. Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo ‘unificadas’ apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. “Entretanto – como nas fantasias do ‘eu inteiro’ de que fala a psicanálise lacaniana – as identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas. ” (…) as nações modernas são, todas, híbridos culturais. (HALL – 2006 – Identidade Cultural na Pós-modernidade – Identidade em questão p. 07-22

CONTINUA EM CAPÍTULO II – ARTE NEGRA

Rui Moreira

Rui Moreira

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Bailarino, coreógrafo e investigador de culturas com trajetória profissional de mais de 30 anos, é um dos ícones da arte de dançar no Brasil. Atuou nas companhias: Cisne Negro, Balé da Cidade de São Paulo, Cia. SeráQuê?, Cia. Azanie (França), e no Grupo Corpo.  Coreografou diversos elencos dentre eles a Cisne Negro Cia de Dança, o Balé do Teatro Guaíra e a São Paulo Companhia de Dança. Sua formação artística mescla danças modernas, balé clássico, danças populares brasileiras e dança contemporânea africana. Foi agraciado com a “Medalha da Inconfidência” pelo governo do Estado de Minas Gerais, um merecido reconhecimento pela longa e profícua atuação artística e social em todo território do nacional e nos países onde levou os valores da arte e cultura do Brasil.