Uma história de dança não eurocêntrica

Crédito das Fotos: Espetáculo Definitivo é o fim - Rui Moreira Cia. de Danças - Fotógrafo Guto Muniz.

Publicaremos aqui uma série de artigos/ reflexões sobre o tema arte negra, divididos em  quatro partes ou capítulos, para que possamos acompanhar o assunto por diversas visadas. Esta iniciativa é uma das ressonâncias da minha inquietação na condição de investigador de culturas, artista coreógrafo, dançarino, diretor de movimento e pensador sobre o fazer artístico no campo da dança. Discutir a atuação e a inserção social das danças  negras contemporâneas no continente africano, nas diásporas africanas e nos demais pontos do planeta tem  se tornado mais e mais um foco. Desde o ano de 1993, quando da criação da Cia. SeráQuê? em Belo Horizonte, MG, venho agregando pessoas e sendo agregado por outras, em núcleos que discutem e confrontam informações e impressões sobre a arte que se inspira no aspecto matricial do continente africano subsaariano e que espelha identidades múltiplas no mundo contemporâneo.

Capítulo III – Será que é necessário falar de identidade para falar sobre arte?

UMA HISTÓRIA DE DANÇA NÃO EUROCÊNTRICA

Veja mais: CAPÍTULO I – CAPÍTULO II – CAPÍTULO IV 

A história da dança como arte, no ocidente é contada a partir das influências europeias. Registra os primórdios de uma dança atrelada às manifestações de arte Romanas e Gregas, chega à corte Francesa, passa pela Rússia e estabelece marcos de modernidade com o expressionismo da Alemanha e de alguns países do leste europeu. As danças da África Negra, em função de sua ‘incompreensível’ característica ‘primitiva animista’, não são citadas na construção histórica da arte de dançar até que os países africanos e principalmente suas diásporas se manifestam como força social significativa.

Em meados do século XIX na Europa ocidental surge o que chamamos até os dias Dança Contemporânea, baseada na busca da essência expressiva do homem. Na Europa, Rodolf Laban (1878-1958) por exemplo, interessa-se pelo movimento e pelo corpo em geral. Seu trabalho originou o alastramento da dança a várias dimensões: terapia, educação e lazer. Na América, Isadora Duncan (1877-1927) renova o movimento que valoriza os fenômenos naturais, se sobrepondo à utilização de qualquer cenário.  Também neste período nos Estados Unidos (um dos grandes territórios de diásporas africanas) no movimento intitulado de Dança Moderna, apresenta as primeiras rupturas deste pensamento hegemônico eurocêntrico e branco.

O desenvolvimento de ex colônias europeias, notoriamente diásporas africanas e conquista da independência por vários países africanos, aliado a uma revisão material provocada pelos movimentos abolicionistas e mais tarde pelas guerras mundiais, revoluções industriais, entre outros motivos levam a população negra moderna no mundo inteiro a acirrar sua luta por conquista de espaços sociais em todas as áreas de atuação, inclusive nas artes.

Na América do Norte e Caribe, artistas e danças cênicas permeadas por pensamentos e procedimentos artísticos europeizados, vão agregar motricidades e estéticas das danças africanas patrimoniais e tradicionais assim como gestos rituais ou de incorporação de seres míticos, próprios de culturas animistas que têm interpretações peculiares nas diásporas.

Obras coreográficas foram desenvolvidas por criadores negros para a expressão corporal e espiritual de artistas negros. Estes desenvolveram métodos e técnicas que ensinadas e difundidas passaram a incorporar a narrativa histórica da arte de dançar mundialmente. Esta expressão foi acolhida dentro dos signos da dança moderna especialmente por influência do trabalho de Katherine Dunham. Uma lendária dançarina que com sua visada antropológica  impulsionou a consciência das culturas da diáspora africana via sua coreografia. Sua famosa técnica de dança reflete uma fusão de muitas culturas. 

Na América, algumas danças do sul ao norte do continente se originaram de musicalidades afro-negras, e foram ensinadas para muitos interessados, ultrapassando inclusive limites étnicos.  Dentre as formas variadas de dançar influenciadas pelas matrizes africanas na América cito: o jazz, o sapateado americano, a salsa cubana,  a salsa porto riquenha, a rumba, o samba, a lambada, o tango, o conjunto de danças sociais norte americanas que acabam compondo o variado repertório do – “Street dance”.  

A motricidade especifica destas danças imprimem valores gestuais e estéticos  que aparecem  no pensamento híbrido das danças cênicas apresentadas em teatros, galerias de arte, ruas e que acabam sendo profundamente difundidas através de vários processos midiáticos globais. 

Pensadores educadores e coreógrafos  negros, motivados pela urgência de informações sobre este universo, publicam tratados técnicos sobre a antropologia do movimento afro, expondo reflexões e métodos codificadores de uma Dança Negra.  Pearl Primus, katerine Duham, Alvin Ailey e Germaine Acogny por exemplo, estabeleceram diálogos com técnicas europeias ocidentais e estruturaram técnicas investigativas próprias, que geraram  publicações que se tornaram referências bibliográficas para artistas negros e não negros, interessados pelas matrizes africanas ou matrizes negras.

Patrick Acogny é dançarino, coreógrafo e Doutor em dança e pesquisador vinculado à Universidade Paris 8 e um dos membros do laboratório etnocenologia de la Maison des Sciences de l’Homme de Paris Nord traz à reflexão um conceito nominado de “dança negra”. Formou-se na Europa e África e se especializou em técnicas contemporâneas e tradicionais de danças da África. Tem uma sólida formação nas técnicas de dança contemporânea ocidental e por uma década, dançou em companhias de dança na França e em seguida, em meados dos anos noventa migrou para o Reino Unido, onde trabalhou com a companhia de Teatro Dança Afro Caribe Kokum como coreógrafo residente e diretor artístico. A convite esteve no Brasil onde conduziu no contexto do FAN – Festival internacional de Artes Negras (Belo Horizonte) a criação do espetáculo – Retour au pays natal – além de ministrar oficinas de dança moderna africana segundo técnica Acogny a  nas cidades de São Paulo e Salvador.  Atualmente  dirige pedagogicamente o Centro Internacional de Formação em danças tradicionais e contemporâneos da África, em Toubab Dialaw – Senegal. 

Com as perguntas e respostas abaixo descritas, ele propõe a tentativa de uma definição clara das práticas que englobam as diferentes correntes de pensamento de artistas negros africanos e das diásporas:

O que é a Dança Negra? Como distinguir da Dança Africana?

Dança Negra é toda prática que se inspira, seja nas danças locais tradicionais ou patrimoniais originárias diretamente da África subsaariana ; seja nas danças derivadas do continente africano; seja nas danças que encontram uma inspiração mítica, espiritual, ou no imaginário e saber filosófico africano. Importante – Dança Negra não é monopólio do continente africano e nem dos africanos da África.

A Dança Negra é o produto de todo artista que possui uma linha de descendência com a África e que se inspira materialmente, espiritualmente ou filosoficamente no continente africano. Essa definição se distingue daquela da dança negra norte americana – black dance. A dança negra tal como é aqui definida não é produto unicamente dos negros ou para os negros.

Dança Negra – é uma denominação tanto artística quanto política. Ela incita-nos a colocar o aspecto das práticas estéticas para além do continente Africano, na medida em que os povos do Norte da África, que também são africanos, têm práticas coreográficas completamente distintas das danças subsaarianas.

Esses traços subsaarianos negros integram as danças dos descendentes históricos de africanos espalhados pelo mundo, situados geograficamente fora da África. Esses artistas consideram essa ligação com a África como essencial à suas identidades.

Dança Africana carrega um imaginário simbólico pesado que tende a excluir o agrupamento de dançarinos africanos que não trabalham a partir das danças africanas locais e patrimoniais, mas a partir de uma “ideia” dessas danças.

Na Dança Negra se encontram inúmeras formas distintas: a dança africana contemporânea – que emerge das danças locais ou patrimoniais;  a dança contemporânea africana – forma contemporânea que não se focaliza particularmente nas danças locais mas sim em uma dança mais singular, chamada também afro-contemporâneo; dança criativa, e todas suas derivações como a jovem dança africana, dança contemporânea africana; dança mestiça; dança criativa, etc. É evidente que as danças patrimoniais africanas estão incluídas na Dança Negra.

O Ocidental pode produzir Danças Negras?

Sim, se ele viveu ou estudou próximo aos africanos ou de africanos oriundos da Diáspora e considera a cultura africana como uma parte de sua identidade.

Como chamar as formas  praticadas por artistas não africanos?

Dança Negra. Esta expressão está para além das diferenças da cor da pele e prioritariamente se interessa pelas práticas e os diferentes símbolos do imaginário africano difundido no mundo.

A Dança Negra é, portanto, uma forma mestiça ou híbrida?

Sim ela é hibrida por sua natureza intrínseca, pois não existe uma forma “pura” ou “autêntica”.

Por que utilizar a expressão Dança Negra e não somente Dança?

A cor de nossa pele nos impõe, por efeito,  uma realidade impossível de rejeitar. Todas as questões que se colocam vêm dos olhares dos outros sobre nós. O que se vê quando nos olham? O que projetam sobre nós? Como responder a tal olhar que nos sujeita e nos priva de nossa primeira dimensão do Ser humano? Esse termo  é uma estratégia e não uma definição do que somos.

Ao demarcarmos esta denominação, tomamos o poder sobre o olhar do outro, pois assumimos o que somos. Podemos então, desconstruir esta noção de Dança Negra para realizar uma dança universal. Uma dança humana que se inscreve nas lacunas diferenciais junto às todas que são praticadas em outros lugares.

Assumindo a expressão “Dança Negra”, existe o discernimento de um olhar sobre o negro.  Não só sobre este olhar sobre nós mesmos, mas esse do “outro” que não vê que nossa cor não é nossa essência, nossa personalidade, nossa alma. Reconhecemos esse olhar pelo que é ou seja, uma subtração, uma diminuição do que somos. Pela Dança Negra nós recriaremos as ligações com todas nossas Diásporas Africanas e reclamaremos nosso pertencimento aos patrimônios da humanidade! Somos a base desse patrimônio, pois a vida apareceu pela primeira vez na África. Nós reconhecemos essa Dança Negra, rica, variada, complexa e impossível de definir, pois ela é como a vida, um movimento que se inscreve além dos olhares da humanidade e da sua história. A Dança Negra, incontestavelmente é mãe de todas as danças, ela é a dança. É nosso papel relembrarmos isso ao mundo inteiro.

Este texto e as perguntas e respostas de Patrick seguem de maneira dinâmica ecoando entre artistas e pesquisadores em vários pontos do planeta e criam uma onda que acrescenta teorias e práticas com o envolvimento das mais diversas áreas, incluindo além de artistas, cientistas antropólogos e sociólogos. Estas questões contribuem no mínimo para um questionamento sobre direitos humanos e sobre a liberdade de expressão implícita quando falamos de identidade por um prisma ampliado.

Ao observarmos a cartografia dinâmica do planeta em constantes alterações vamos também considerar que as crescentes demandas de acolhimento do gesto humano e das diversas culturas são fatores decisivos na alteração do meio ambiente. Seja este ambiente ecológico ou social. Ou seja, nos damos conta da responsabilidade intrasferível que temos para com o planeta.

Portanto, ao acompanhar a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024)[1], onde a comunidade internacional reconhece que os povos afrodescendentes representam um grupo distinto cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos e que há cerca de 200 milhões de pessoas auto identificadas como afrodescendentes que vivem nas Américas e muitos mais vivem em outros lugares do mundo, fora do continente africano, realizamos que o Negro não é uma questão do Negro. O Negro é uma questão dos países; das nações; e tudo que ajuda os povos a assumir seus compromissos com seu lado afrodescendente é melhor para todos.  


[1]Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela resolução 68/237 da Assembleia Geral da ONU e será observada entre 2015 e 2024, proporcionando uma estrutura sólida para as Nações Unidas, os Estados-membros, a sociedade civil e todos os outros atores relevantes para tomar medidas eficazes para a implementação de um programa de atividades no espírito de reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Uma oportunidade para destacar a importante contribuição dada pelas e pelos afrodescendentes para nossas sociedades e propor medidas concretas para promover a sua plena inclusão, o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.

CONTINUA EM CAPÍTULO IV – DANÇA AFRO NO BRASIL

Rui Moreira

Rui Moreira

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Bailarino, coreógrafo e investigador de culturas com trajetória profissional de mais de 30 anos, é um dos ícones da arte de dançar no Brasil. Atuou nas companhias: Cisne Negro, Balé da Cidade de São Paulo, Cia. SeráQuê?, Cia. Azanie (França), e no Grupo Corpo.  Coreografou diversos elencos dentre eles a Cisne Negro Cia de Dança, o Balé do Teatro Guaíra e a São Paulo Companhia de Dança. Sua formação artística mescla danças modernas, balé clássico, danças populares brasileiras e dança contemporânea africana. Foi agraciado com a “Medalha da Inconfidência” pelo governo do Estado de Minas Gerais, um merecido reconhecimento pela longa e profícua atuação artística e social em todo território do nacional e nos países onde levou os valores da arte e cultura do Brasil.