Crédito das Fotos: Deságua. ESTUDO M'boy-Mirim. Foto ELDER SERENI
Introdução:
O Projeto DESÁGUA, realizado pelo …AVOA! Núcleo Artístico, foi contemplado pelo PROAC Dança nª 03/2022 e tem como proposta a criação de uma obra inédita de dança solo, com base na investigação de três territórios: o Rio M’Boy-Mirim, em Embu das Artes-SP, o rio Pirajussara, no bairro do Jardim Jussara, em São Paulo-SP e o Rio Turvo, no distrito de Turvínia, município de Bebedouro-SP. Esta é uma carta escrita por Luciana Bortoletto e endereçada aos rios, como um caminho que está sendo desbravado no corpo, inquietações reveladas nesses registros. A proposta de escrever cartas é uma provocação de Élder Sereni, dramaturgista do projeto.
Caros rios M’Boy-Mirim e Pirajussara,
Saudações!
Escrevo esta carta endereçada a vocês. Peço licença e os reverencio, em primeiro lugar.
Estou aqui imersa em cosmopercepções indígenas apresentadas por Ailton Krenak[1], a respeito da existência dos rios. Ele fala sobre “o corpo do rio” e como os rios voam e mergulham, como os rios podem ser caminhos e lugares de deslocamentos… Agora que o projeto chega em uma etapa mais avançada de pesquisa e que necessita um encaminhamento para dar forma, contornos e movimentos a uma dança que DESÁGUA, me flagro pensando naquilo que conversamos há alguns encontros: Afinal, qual seria, então, uma perspectiva vinda de vocês? Como vocês vêem? Como nos percebem? O fato de vocês, rios, serem seres vivos, com “um corpo que sabe voar e mergulhar”, então não devem estar apartados de meu próprio corpo, pois nós bebemos sua água, sentimos o seu cheiro e nos transformamos diante de suas presenças ao escutarmos suas vozes, seus cantos…. Desaguar também é uma palavra que significa chorar para nós, humanos. Fico aqui imaginando e me perguntando: será que as lágrimas são microcosmos do mar? Pois, se elas são águas salgadas, o choro poderia ser como uma tempestade em alto mar, talvez… Será? Vejo que vocês percorrem tantos lugares para desaguarem no mar, não é mesmo? Sim, vejo nesse ato de imaginar um tanto de poesia latente.
… Poesia. Como eu posso dançar tamanha grandiosidade de possibilidades? Será que eu posso voar junto com os rios aéreos que transitam dentro e fora de minhas vias aéreas?
E como eu posso mergulhar nos rios, por meio de imagens poéticas e dança? E se esses rios são caminhos, como nos diz Ailton Krenak (que escuto neste momento pela internet), como posso percorrê-los e me deslocar? Como nos tocamos sem imergir, literalmente, em suas águas? Posso eu deslocar minhas percepções e valores mundanos para outras mobilidades subjetivas? Tais mobilidades podem se tornar objetivas e se comunicarem com outros seres humanos? Ou eu estou com as minhas águas represadas? Como eu devo me descolar dos condicionamentos, liquidar alguns preconceitos e convicções, sacralizar uma dança em reverência às maravilhas proporcionadas pelos rios – seres sagrados – como nos diz Aílton Krenak? Como eu posso dar forma a uma dança que nasce nas suas margens, rios? Posso eu ritualizar a minha incerteza e exaltar a sabedoria da fluidez e sinuosidade desse corpo-rio? O Krenak nos diz agora: “é insubstituível o corpo de um rio; como uma cidade pode tapar o corpo de um rio?” Eu também me pergunto: como é possível?
Ele nos diz que não aprendemos a ouvir a voz de um rio e por isso não ativamos nossas memórias de nós mesmos. Memória… Memória!! “O rio fala e a gente não ouve”, disse Krenak aqui e agora.
Rios M’Boy-Mirim e Pirajussara, estou tocada por suas presenças. Presenças que me provocam a um movimento que tem sido sutil e tão singelo…. Ainda não sei como dilatar essa pequenina dança que brota feito água de nascente, sob pedras, plantas e raízes antigas. Me contem: como uma nascente se transforma em imensidão? Quero abrir fissuras em mim para dar vazão à tamanha sinuosidade e liquidez, fluidez e profundidade com as quais me deparo sempre que chego nas suas margens, M’Boy e Pirajussara…. Este último, soterrado, canalizado, retificado, “esgotado”. Ainda falta conhecer o rio Turvo e penso que essas perguntas me acompanharão até lá.
E as águas que são usadas para despejo de esgoto? Pirajussara, quando você transborda e entra nas casas do Jardim Jussara, leva contigo o que despejam em suas águas. E é esgoto… Esgotado. Interessante pensar na relação entre essas duas palavras: “esgoto” e “esgotado”. Um rio cheio de esgoto parece mesmo estar esgotado, com suas águas caudalosas e fétidas, com seu corpo-rio tendo seu percurso alterado e aprisionado.
Imensos rios, pode esta carta que lhes escrevo se transformar em poema dançado? Ou em manifestação das suas vozes em meus gestos? Como posso ser técnica e objetiva diante de tamanha força e ancestralidade e, ao mesmo tempo, como me inspirar diante da perversa relação de poder que estes três territórios – M’Boy-Mirim, Pirajussara e Turvo – estão submetidos? Digo, submetidos ao que há de pior nos seres humanos? As pessoas que entrevistamos, as memórias que trazem consigo contém os rios? Pode um rio ser o centro, ao invés do humano ser o centro? Antropoceno. Antropocentro.
Pode uma dança ser farol ou ponte ao invés de permanecer no centro, no foco?
Quero mover minhas águas interiores pois elas não são só minhas. Agora sei.
Minhas águas, essas que percorrem e hidratam a carne, são rios internalizados. Um dia eu também vou desaguar no mar, vou ficar entre céu e terra assim como os rios aéreos e os rios terrenos são a mesma coisa, vivendo em movimento e em transformação.
Todas as memórias humanas que coletamos em Deságua até aqui, nos alertam sobre uma certa apatia diante dos corpos dos rios que visitamos. Devo dançar a resignação e a hostilidade? Posso dançar uma falta de memória ancestral?[2]
Se sou braço de rio[3], preciso alcançar e tocar outros braços, talvez eu deva entender que gesto faço eu, sendo braço de rio. Quero desaguar uma dança-fonte, uma dança-ponte, uma dança-líquida, ser “corpo-d’água”.
Sabe, me encanta demais imaginar que rios têm corpos e são capazes de voar e mergulhar, como nos revela Krenak.
Até breve.
Abraço, Luciana
[2] Ler o texto https://portalmud.com.br/portal/ler/confluir-quando-a-danca-e-o-rio-encontram-a-palavra
[3] Braço de Rio é uma proposta de Élder Sereni para meu modo de percorrer um território específico: o córrego da Ressaca, no centro histórico do Embu das Artes, que tem suas margens transformadas em estacionamento aos finais de semana, e isso tende a suprimir a experiência de estar ali, bem na margem do córrego rodeado de vegetação e animais silvestres. Danço na margem do córrego da Ressaca, atravesso a avenida ali ao lado, cruzo a pracinha do centro histórico do Embu, em meio às barracas na feira de artesanato, sigo até outro trecho do rio que fica na Rua Padre Belchior de Pontes e conecto, com a dança em percurso, trechos distintos do rio em área urbana e relativamente ignorada em meio ao passeio público. Nesse trajeto, me imagino sendo um braço do rio. “Eu levo a lembrança do rio” aos lugares onde ele está sendo ignorado, com minha presença em deslocamento pelas ruas do centro dessa cidade.
Fotos 1 e 2 – Deságua. ESTUDO M’boy-Mirim. Foto ELDER SERENI
Foto 3 – Deságua. ESTUDO Pirajussara. Foto VITORIA SAVINI