Balé da Cidade em embate de gestão

Crédito das Fotos: Silvia Machado

Perto de seu aniversário de 55 anos, o Balé da Cidade pede ajuda e reclama de descaso na gestão do TMSP

Às vésperas de seu aniversário de 55 anos, no dia 7 de fevereiro, o Balé da Cidade de São Paulo volta a ser assunto nos jornais. A pauta não é a temporada que será apresentada durante a ocasião do aniversário, que inclui duas obras indicadas ao prêmio de Espetáculo / Estreia pela Comissão de Dança da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes.

Não é, mas poderia ser, porque a recuperação artística do Balé da Cidade é assunto importante, e que deveria ser um foco da discussão. Premiado ano passado com um APCA por Coreografia, o BCSP não era reconhecido pela associação de críticos desde 2009. Porém, uma das obras dessa temporada, Motriz, da atual diretora do grupo, Cassi Abranches, já aponta para o problema que coloca o Balé novamente na grande mídia: o conflito com a gestão do Theatro Municipal de São Paulo, em crise que a esse ponto já parece eterna.

O que existe de surpreendente quanto à produção da obra de Abranches é que ela só foi possível por cooperações externas ao Balé. Marca desse primeiro ano de gestão de Abranches, foram os contatos da equipe de direção do Balé da Cidade que garantiram as temporadas a que assistimos. Motriz, por exemplo, teve verba de produção externa captada pela Diretora Assistente, Patrícia Galvão, que também foi responsável por toda a produção executiva da obra.

Também foi o empenho da diretoria do BCSP que garantiu a possibilidade de continuidade dos trabalhos da companhia, que está, desde o final de 2021 desalojada, porque novamente o prédio que abrigará o Balé da Cidade na Praça das Artes foi interditado. Esperado desde 2013, o prédio continua inacabado. Depois de sugestões peculiares da diretoria do TMSP, que incluíram a possibilidade de alojar o BCSP num estacionamento, a diretoria do BCSP conseguiu um acordo com a Company Dance Center, academia particular de dança em Moema, extremamente bem equipada, mas ainda assim restrita frente à necessidade de múltiplos espaços pela companhia. Segundo reportagem do Estadão, o Balé da Cidade negociou um contrato de favor, de valor irrisório, e que está com quatro meses em aberto.

Mesmo em condições abaixo das ideais, o BCSP tem produzido, e produzido coisas boas. Porém, semanas após a indicação de Motriz como um ponto alto da programação do BCSP, a diretoria da companhia é informada da demissão arbitrária da Diretora Assistente, e da extinção de seu cargo — que no entanto faz parte do Balé da Cidade desde sua criação, e que já foi ocupado por profissionais como Iracity Cardoso, Ruth Rachou, Cleusa Fernandes, Hugo Travers, Ana Teixeira, e Luiz Fernando Bongiovanni, mencionando alguns.

Acionada pela Folha e pelo Estadão, Andrea Saturnino, Diretora Artística do Theatro Municipal, não explica, mas justifica que a rescisão foi feita em consideração a prioridades estratégicas do equipamento. Não parece, no entanto, figurar entre essas prioridades, a excelência artística, que neste ano todo teve participação pesada da Diretora Assistente do BCSP.

Em meio à situação, os bailarinos se manifestam em uma nova conta do Instagram. Nova, porque faz parte da proposta da Sustenidos, OS gestora do TMSP, que os corpos estáveis não possam fazer sua própria comunicação, centralizada por uma equipe da OS, e que, distante da produção específica do Balé, tem um histórico de gafes.

Os bailarinos tomam a coragem pra se manifestar depois que um outro corpo estável, o Coro Lírico Municipal, também cria, à revelia da OS, seu canal de comunicação. O Coro Lírico é alvo de um outro problema de ingerência, com a Sustenidos tendo determinado a realização de testes de avaliação dos músicos já contratados. Ao Estadão, a Diretora do Theatro explica as restrições causadas pelo déficit orçamentário, que não tem reajuste dos repasses recebidos pela OS, frente a índices inflacionários.

Porém, a Associação dos Músicos Instrumentistas do Theatro Municipal já se manifesta em busca de transparência, porque contam que essa é a terceira justificativa dada pela instituição para os testes, que foram postulados contra a vontade da direção daquele corpo estável, e que apontam mais indícios de uma crise da qual não temos real dimensão. Mais uma vez, as contas das OS gestoras do TMSP são um problema.

Misturam-se ai a crise econômica e de gestão vividas pelo Theatro Municipal há uma década. É uma questão de administração financeira do sistema de OS, que bate com a administração artística de cada um dos corpos estáveis. O resultado, tem sido uma verdadeira novela: desde que se implementou o sistema de OS na gestão do Theatro Municipal, nenhuma OS conseguiu completar seu contrato, sempre marcado por dramas e escândalos.

Quando assumiu em maio de 2021, a Sustenidos parecia que encerraria essa inconstância, mas em dezembro do mesmo ano o Tribunal de Contas Municipal considera que houve conduta indevida da comissão de seleção do edital que escolheu a Sustenidos, determinando, em decisão unânime que a administração pública “1. Adote as medidas necessárias para sanear as irregularidades apontadas, levando-se em conta que a Administração possui o poder/dever de “anular seus próprios atos, quando eivado de vícios que os tornem ilegais. Súm. 473, STF. 2. Instaure processo administrativo para apurar os responsáveis pelos atos ilegais praticados.”

O processo corre em sigilo e segue aberto, sem manifestações notáveis em mais de um ano de encaminhamento, dando sequência aos longos trâmites de resolução das problemáticas relações entre as OS e o Theatro Municipal. No meio disso, o Balé da Cidade continua dançando, e pode ser assistido a partir do dia 2 de fevereiro no Theatro Municipal, em programa com duas obras indicadas ao APCA.

Histórico

2012 É sancionada a Lei que cria a Fundação Theatro Municipal, mudando o modelo de gestão do equipamento

2013 A prefeitura assina contrato de 4 anos com a IBGC para a gestão do Theatro Municipal. O IBGC foi a única OS a atender à convocação pública

2014 A Promotoria do Patrimônio Público e Social promove inquérito sobre a contratação do Diretor Artístico do TMSP, o maestro John Neschling, com salário de R$ 150 mil, recebidos através de empresa

2015 O diretor do Theatro Municipal, José Luiz Herencia, deixa o cargo, alegando divergências na perspectiva de gestão da casa, com relação ao Diretor Artístico, enquanto era investigado por desvio de verbas do TMSP

2016 Instaura-se a CPI do Theatro Municipal. Dentro das investigações, Herencia confessa fazer parte de um esquema, e, em acordo de delação premiada, denuncia a participação de Neschling e William Naked, diretor do IBGC, no desvio dos recursos públicos. A conclusão da CPI aponta que o IBGC fez um desvio de mais de R$ 21 milhões de verba da FTMSP entre 2013 e 2015, com 32 pessoas sendo indiciadas no relatório de Ricardo Nunes, então vereador, atual prefeito

2017 O contrato do IBGC é suspenso. Através de concorrência pública, a gestão do Theatro Municipal passa para o Instituto Odeon, segundo colocado (a OS ganhadora foi desclassificada por questões de documentação) 

2018 O Secretário de Cultura André Sturm pede a rescisão do contrato do Odeon, alegando desacerto na relação entre a OS e a FTMSP 

2019 O novo Secretário, Alê Youssef, suspende a rescisão, criando um grupo de trabalho para a avaliação das contas da Odeon. A diretora da FTMSP renuncia ao cargo, acusando a Secretaria de não querer saber das práticas imorais ocorridas no TMSP por conta da atuação da OS. A prestação de contas do Odeon é reprovada, e a Prefeitura anuncia interrupção do contrato com a instituição 

2020 É aberto edital para a nova OS gestora, mas ele é impugnado, depois suspenso. A OS Santa Marcelina assume a gestão emergencial temporária do TMSP

2021 O edital de seleção de OS é publicado e avaliado, porém com a entrada de recursos, a OS colocada em primeiro lugar no edital, a Sustenidos, assume ainda em caráter emergencial, antes da homologação de seu resultado e celebração oficial de seu contrato, num valor de R$565 milhões até maio de 2026. O Instituto Baccarelli, que ficou em segundo lugar na seleção entra com representação no tribunal de contas questionando as notas atribuídas à Sustenidos. A representação é considerada parcialmente procedente, e o relatório do TCM determina a instauração de processo administrativo para a identificação dos responsáveis pelos atos ilegais, a resolução das irregularidades, e o dever do poder público de anular seus próprios atos em situações de ilegalidade 

2022 A Sustenidos se queixa da falta de reajuste dos valores de seus repasses, e inicia ações de gerência na gestão dos corpos estáveis, ainda que cada corpo tenha seu gestor responsável 

2023 O anúncio da realização de testes com os músicos já contratados pelo Coro Lírico é estopim para notícias sobre problemas na gestão da Sustenidos. O Balé da Cidade se manisfesta sobre o descaso da OS, e sobre a demissão de sua Diretora Assistente. Coro e BCSP criam redes sociais próprias com pedidos de SOS. O processo no TCM segue, sem manifestações até janeiro. Sobre o caso, a Folha publica matéria de Iara Biderman, e o Estadão publica matéria de João Luiz Sampaio e Luciana Medeiros


* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, com pós-doutoramento pela ECA/USP, onde foi Professor Colaborador, e é editor do site Outra Dança

*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Henrique Rochelle

Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.