Crédito das Fotos: Espetáculo Q'eu isse - Cia. SeráQuê? - Fotógrafo Guto Muniz.
Desde o ano de 1993, quando da criação da Cia. SeráQuê? em Belo Horizonte, MG, venho agregando pessoas e sendo agregado por outras, em núcleos que discutem e confrontam informações e impressões sobre a arte que se inspira no aspecto matricial do continente africano subsaariano e que espelha identidades múltiplas no mundo contemporâneo. Discutir a atuação e a inserção social das danças negras contemporâneas no continente africano, nas diásporas africanas e nos demais pontos do planeta tem se tornado mais e mais um foco. Esta iniciativa é uma das ressonâncias da minha inquietação na condição de investigador de culturas, artista coreógrafo, dançarino, diretor de movimento e pensador sobre o fazer artístico no campo da dança. Publicaremos aqui uma série de artigos/ reflexões sobre o tema arte negra, divididos em quatro partes ou capítulos, para que possamos acompanhar o assunto por diversas visadas. |
Capítulo II – Será que é necessário falar de identidade para falar sobre arte?
ARTE NEGRA
Veja mais: CAPÍTULO I – CAPÍTULO III – CAPÍTULO IV
Ao observar hoje estes movimentos históricos pelo olhar conceitual da etnociência sobre as artes do corpo e do espetáculo, vamos nos deparar com um leque de possibilidades para abrir visões e estimular estudos dos vários aspectos do pensamento contemporâneo sobre as matrizes culturais africanas subsaarianas.
As múltiplas identidades do ‘povo negro’ e arte são temas sempre oportunos quando se discute Cultura no Brasil. Falar ‘negro’ apesar da complexidade do termo, é falar de um forte eixo cultural e emocional brasileiro. É complexo falar ‘negro’ em qualquer parte do mundo, pois este termo dá nome a uma visão separatista recheada de preconceitos históricos a partir da cor da pele dos indivíduos em sistemas de classificação racial.
Diferentes sociedades aplicam critérios diferentes a respeito de quem é classificado como ‘negro’ e muitas vezes, variáveis sociais, tais como classe social e status socioeconômico, também desempenham um papel relevante nessa classificação. Talvez pelo fato de se reconhecer apenas como teoria cientifica a África como continente matricial da humanidade, ou por rememorar que o processo das Diásporas africanas tenha se dado mais fortemente através do êxodo provocado por vergonhosos processos escravidão humana, e pela exploração desordenada de riquezas naturais e minerais, com histórias de dor e subjugação que não geram orgulho a ninguém.
As rotas do Atlântico Negro concentram uma culpabilidade que afasta o continente africano de suas diásporas e vice-versa.
“Os africanos transplantados à força para as Américas, através da Diáspora negra, tiveram seu corpo e seu corpus desterritorializados. Arrancados de seu domus familiar, esse corpo, individual e coletivo, viu-se ocupado pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se apossou como senhor, nele grafando seus códigos linguísticos, filosóficos religiosos, culturais, sua visão de mundo. Assujeitados pelo perverso e violento sistema escravocrata, tornados, estrangeiros, coisificados, os africanos que sobreviveram às desumanas condições da travessia marítima transcontinental foram destituídos de sua humanidade, desvestidos de seus sistemas simbólicos, menosprezados pelos ocidentais e reinvestidos por um olhar alheio, o do europeu. (MARTINS, 1997, Afrografias da memória – p.24-25)”
O Brasil é a maior nação Negra fora da África. Isto reforça e confirma a história do novo continente e a trajetória de emigração de povos dos velhos continentes para as novas terras também como estratégia de sobrevivência.
O mundo pelo prisma do exotismo, ainda enxerga e interpreta o Brasil como um lugar de natureza privilegiada onde etnias, credos e culturas se misturam, resultando em uma construção de identidade a partir do encontro das semelhanças e das diferenças. Os corpos aculturados aqui, neste espaço geográfico, na sua complexidade absorvem e expressam experiências emocionais e combinações genéticas que merecem ser observadas, estudadas e confrontadas para que se possa acompanhar e valorar os movimentos socioculturais deste povo.
No universo das artes, identificamos uma tendência desde o modernismo de que as matrizes culturais do Brasil sejam visitadas mais fluidamente, potencializada por sentimentos de auto determinação racial e de pertencimento dos signos nacionalistas. Um processo diferente, que amenizou os preconceitos observados em outras gerações, especialmente sobre os valores cultivados pela população negra.
Isto, proporcionou uma paulatina apropriação/reconhecimento das nuanças culturais do povo brasileiro por ele próprio. As artes plásticas, visuais e a música, exploram a diversidade estética advindas das distintas culturas matriciais do país, mas em muitos dos casos não dão os devidos créditos. Já nas artes da cena, mais especificamente na dança cênica profissional aqui desenvolvida, é muito comum a desconsideração dos legados culturais da África negra e dos povos indígenas. Habitualmente são consideradas estéticas primitivas ou folclorizadas. Talvez isto se dê, pelo fato de que os processos de formação dos artistas estão embasados na super valorização do aculturamento que tem como mote discursos canônicos eurocêntricos e práticas corporais que pouco dialogam com o exercício das culturas nacionais.
Mesmo sabendo que o exercício da arte sempre deverá significar um salvo conduto para a expressão, livre de qualquer tratado étnico ou social pré-estabelecido ou não (…), dizer brasileiro é também dizer ser ‘americano do sul’, e ‘afrodescendente’, e ‘ameríndio’. Ou seja, não se pode desconsiderar os aspectos culturais dos indivíduos para discorrer sobre a manifestação das expressões artísticas.