Crédito das Fotos: Acervo Gouvêa-Vaneau. Thales Pan Chacon, Célia Gouvêa (primeiro plano) / Rui Frati, Eva Reska, Debby Growald, Mara Borba, Daniela Stasi, Márcia Bittencourt e Sofia Sarue (segundo plano - da esq. p/ dir.). Fachada do Teatro Galpão . São Paulo - SP -
Por mais que seja com pesar que chegue a essa constatação, é inegável que o regime militar culminou com o período de maior efervescência cultural do país, com multiplicidade de estéticas artísticas e o incentivo à profissionalização de muitos artistas. Não foi diferente na dança. Foi durante a ditadura que nasceram grupos e movimentos de extrema relevância na cena cultural até os dias de hoje, como o Teatro de Dança Galpão, em São Paulo, e o Grupo de Dança Contemporânea, em Salvador.
A obra “Caminhada”, de Célia Gouvêa e Maurice Vaneau, apresentada em 1974 na inauguração extraoficial do Teatro de Dança Galpão, incorporou muito bem o espírito de arte como ferramenta de manifestação e acabou por inaugurar uma nova estética adotada até hoje – a dança teatro.
“(…)e a última [parte de Caminhada], de caráter mais fechado, com alusões políticas, descrevendo a trajetória de um povo em busca de sua identidade (movimentos larvares, uns passando por baixo dos outros, brotando do solo, até a verticalidade e o contato festivo ou de trabalho com os seres em volta), e a luta contra a repressão (Ruth Rachou, com máscara e bastão brancos e capa preta).” (in Linneu Dias, Dança Moderna, 1992, p. 129)
Ocorre, porém, é que pelo fato de a dança ter sofrido pouca censura por parte do governo, que não entendia as mensagens de repúdio ao sistema embutidas nas obras[1], o reconhecimento dos movimentos de oposição ao regime acabou sendo atrelado aos artistas do teatro, da música e das artes plásticas. Isso implica na pouca oferta de pesquisas aprofundadas deste tema, sob o qual repousa o nascimento da dança contemporânea paulista.
Lia Robatto, coreógrafa e professora aposentada da UFBA, dedicada à dança há mais de 50 anos, discorre sobre o assunto:
“Na época da ditadura militar, o Grupo de Dança Contemporânea – GDC [da Bahia], por exemplo, conseguiu viabilizar uma produção expressiva, graças à ignorância dos censores, que não entendiam a linguagem simbólica, os códigos, as metáforas em favor da liberdade”.
“Lembro que fizemos um espetáculo emblemático chamado Mobilização, em 1978. Nós ocupávamos todas as dependências do Teatro Castro Alves, com mais de 80 intérpretes”.
“Basta contar que havia uma instalação, com um ovo dentro da gaiola, por exemplo, que simbolizava a ideia presa antes do nascedouro. Mas eles, os censores, não compreenderam esta mensagem, bem como outras” (in http://atarde.uol.com.br/cultura/teatro/noticias/50-anos-do-golpe-danca-dribla-a-repressao-1577216)
A pesquisadora Lauana Vilaronga Cunha de Araújo compartilha do mesmo entendimento:
“Os espetáculos do GED, pela complexidade e ousadia de sua atuação em termos artísticos, estéticos e políticos, somados à aglutinação de artistas de teatro, música e artes visuais, conseguiram respeito e credibilidade dos setores governamentais, recebendo, muitas vezes, subsídios do governo estadual para suas montagens”
“No campo artístico, linguagens como o teatro e as artes visuais foram duramente prejudicadas com os constantes cortes aos textos teatrais e fechamento de exposições, com a destruição ou recolhimento das obras”.
“(…) A realidade da dança se distingue desse contexto, uma vez que sua caracterização genuinamente corporal evitou, em muitos casos, a possibilidade de uma atuação severa do órgão de censura”.(in http://atarde.uol.com.br/cultura/teatro/noticias/50-anos-do-golpe-danca-dribla-a-repressao-1577216)
Já a coreógrafa Conceição Castro, que criou o grupo Odendê na Escola de Dança da UFBA, deu seu depoimento sobre a diferença no tratamento da censura para a dança:
“Quando eu trabalhava com a expressão corporal para o teatro pude ver a atuação da censura, que muitas vezes coibia textos inteiros. Naquela época, a dança não sofreu realmente grande repressão”.(in http://atarde.uol.com.br/cultura/teatro/noticias/50-anos-do-golpe-danca-dribla-a-repressao-1577216)
Este post não tem a pretensão de exaurir a complexidade que paira em torno deste assunto, mas apenas levantar alguns fatos históricos que identifiquei em breve pesquisa e que tragam à reflexão sobre a riqueza criativa experimentada pela dança brasileira em um período tão custoso à sociedade. Impossível não atrelar isso à imagem da flor de lótus, que nasce em meio à lama.
Outros movimentos foram importantes como o Grupo Teatro do Movimento e Grupo Coringa, ambos do Rio de Janeiro e ainda o Grupo Corpo de Minas Gerais, Ballet Stagium de São Paulo, além de artistas como Sônia Mota, Susana Yamauchi, Iracity Cardoso, Antônio Carlos Cardoso, Klauss Vianna, Lia Rodrigues, Graciela Figueroa, Paulo e Rodrigo Pederneiras.
Rememorar, revisitar, refletir sobre a efervescência cultural em tempos de ditadura é oferecer ferramentas para compreender o cenário sobre onde repousa hoje a cena da dança contemporânea. Quiçá, oferecer ferramentas para fortalecer os artistas que criarão e inovarão pelos próximos 40 anos…
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NAVAS, Cassia. DIAS, Linneu. Dança Moderna, 1992. Secretaria Municipal de Cultura, São Paulo.