Ballet Stagium: inovação e resistência

Crédito das Fotos: Décio Otero e Márika Gidali no espetáculo Maracatu, do Ballet Stagium. Foto: Emidio Luisi

Em atuação desde a sua criação em 1971, durante a ditadura militar no Brasil (leia mais sobre as produções de dança nesse período aqui), o Ballet Stagium figura no hall das mais bem conceituadas companhias de balé brasileiras, reconhecida nacionalmente por seu projeto de engajamento político. Traz à tona temas como racismo, violência, opressões e genocídios, a companhia cria coreografias adaptáveis a qualquer cenário e dialoga diretamente com o público ao se apresentar em pátios de escolas públicas das periferias dos grandes centros, comunidades, igrejas, praias, hospitais, estações de metrô, presídios, palcos flutuantes, desfiles de escolas de samba e em chão de terra batido de comunidades indígenas.

O Stagium começou sem grandes pretensões, com muita, persistência, dedicação e pé no chão, características europeias de sua fundadora, que vivenciou os percalços da Segunda Guerra Mundial. Para viabilizar o trabalho da cia, optaram por fazer espetáculos pelo interior do Brasil, o que enraizou a característica itinerante da cia. de não se prender ao eixo Rio-São Paulo. Vivenciaram a realidade em que viviam os brasileiros e entenderam que a dança seria o meio pelo qual o Ballet Stagium cooperaria com a sociedade da qual faziam parte. As expressões dos habitantes das cidades pelas quais passava foram incorporadas às coreografias, que abordavam problemas brasileiros através de uma linguagem universal: a dança.

Mantém até hoje diversos projetos utilizando a dança como forma de integração social, destacando-se: Dança da Serviço da Educação, Projeto Escola Aberta, Projeto Professor Criativo, Projeto Capoeira, Projeto Joaninha, Projeto Dança de Rua e Projeto Capoeira (estes dois últimos nas unidades da antiga FEBEM), e já levou mais de 80 mil crianças e adolescentes da periferia da cidade de São Paulo, para assistirem espetáculos de dança.

A Companhia e a Academia funcionam, desde 1974, num grande estúdio na Rua Augusta, na cidade de São Paulo, onde desenvolvem não apenas a prática e o ensino da dança, mas um verdadeiro programa de pesquisa em várias linguagens da dança, ideias e produções inovadoras.

Após passar por grave crise financeira, que acometeu boa parte das cias brasileiras nos últimos anos, o Stagium quase fechou e manteve suas atividades graças ao apoio de parceiros institucionais como o SESC, Sesi, Sabesp, o edital do Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, que os contemplou pela primeira vez, além de um crowdfunding. Este ano a companhia circula com o apoio do Caixa Cultural.

KUARUP, A OBRA ICÔNICA

Com 47 anos de existência, o Ballet Stagium conta com mais de 80 coreografias em seu repertório. Uma das obras mais icônica da cia., e que já foi dançada mais de 400 vezes, é Kuarup, que estreou no Theatro Municipal de São Paulo em 1977.

Segundo a descrição da crítica Helena Katz para o jornal o Estado de São Paulo, o programa do espetáculo, feito em pape craft, trazia o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade e uma dedicação de Décio Otero: “Para você, que nasceu aqui, que mora aqui, que gosta daqui” (…) “um primeiro passo em um novo caminho de um despojamento a ser continuado.”

Inspirado no ritual indígena do Alto Xingu celebrado como despedida aos mortos, o espetáculo, que levou multidões aos teatros, abordou a questão do extermínio a tribos indígenas e também aquele oriundo da ditadura. A troca de figurino – assinado por Clodovil Hernandez – acontecia em cena. Os macacões tinham as cores da bandeira brasileira e propunham uma associação entre trabalhadores e índios, ligando as violências que atingiam a ambos.

O domínio do mais forte, que almeja sempre vencer o mais fraco, permeia ainda hoje a nossa sociedade. Esta obra, mais de 40 anos passados de sua criação, ainda nos traz paralelismos e significação, o que denota a sua atemporalidade.

OS FUNDADORES: MÁRIKA GIDALI E DÉCIO OTERO

Até hoje a companhia é coordenada por Marika Gidali e Décio Otero. Parceiros na vida e na profissão, Márika e Décio continuam à frente da direção da Cia. produzindo obras de qualidade técnica e impacto social. Em declaração à revista Veja, em 1974, transcrita por Linneu Dias, Márika disse que “Decidimos que, se juntássemos nossas cabeças e nossa tremenda capacidade de trabalho, chegaríamos a algo novo”. De fato, esta união foi crucial para a história da dança brasileira.

Márika Gidali é bailarina, coreógrafa, professora, diretora artística e fundadora do Ballet Stagium. Nasceu em Budapeste, na Hungria, em uma família judia, em meio a um cenário de guerra. Em uma das poucas declarações já dadas sobre o assunto, confessou que teve uma infância conturbada. Isso porque seus pais foram levados a campos de concentração e a deixaram em um orfanato por um tempo. Márika iniciou sua carreira no Brasil como bailarina do Ballet do IV Centenário e, desde então, participou de momentos importantes para a construção da história da dança brasileira. Sobre a sua trajetória na dança, ela afirma: “não é a gente que escolhe, é a dança que te escolhe”.

Décio Otero é bailarino e coreógrafo. Nascido em Ubá (MG), dançou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e fez carreira como bailarino na Europa. Ainda que não tivesse experiência como coreógrafo no início do Stagium, a convivência com grandes diretores e a participação em importantes movimentos artístico-culturais na década de 70, construiu sua linguagem artística autoral e revolucionária à época da criação da cia. Sobre a persistência da companhia em estrear trabalhos e continuar na estrada, o diretor declara que o romantismo talvez seja o motivo de estarem lutando sempre: “Desde o nosso encontro em 1971, sempre fomos românticos em todos os sentidos, acreditamos que a nossa opção de vida atua de alguma forma na sociedade que estamos inseridos, daí a nossa resistência”.

REFERÊNCIAS

NAVES, Cássia – DANÇA MODERNA, Cassia Navas, Linneu Dias – São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. 

KATZ, Helena. Ballet Stagium leva “Kuarup” de volta ao Teatro Municipal 40 anos depois da estreia. O Estado de São Paulo, 2017. (https://cultura.estadao.com.br/noticias/teatro-e-danca,ballet-stagium-leva-karup-de-volta-ao-teatro-municipal-40-anos-depois-da-estreia,70002001401)

Fundadora do Ballet Stagium, Marika Gidali relembra sua trajetória no Persona em Foco desta quarta-feira (http://tvcultura.com.br/acontece/345_fundadora-do-ballet-stagium-marika-gidali-relembra-sua-trajetoria-no-persona-em-foco-desta-quarta-feira-267.html)

Wikipedia – https://pt.wikipedia.org/wiki/Ballet_Stagium (consulta em 04/10/2018)

Natália Gresenberg

Natália Gresenberg

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É gestora cultural, idealizadora e diretora do Portal MUD. Advogada formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-graduada em Gestão Cultural pelo Centro Universitário SENAC. Especialista em leis de incentivo à cultura e direito do entretenimento. É consultora em elaboração de projetos e fomentadora de ações de mediação e formação de público.