Sem explicação

Os programas de sala têm desaparecido ou diminuído. Como o público ganha acesso ao universo da obra?

Aquilo que a dança tem pra dizer parece, em potência, ilimitado. Normalmente a arte não é usada pra pra função de informar, mas o tanto de poética e entendimento que se pode transmitir com a dança ultrapassa até aquilo que já conhecemos. 

O corpo em movimento comunica motivos, estados, percepções, sujeitos, inflexões, tensões, sensações, sentimentos, e, mais que tudo, contextos. É este corpo, que vem deste lugar, que tem esta história, que vivencia estes fatos, e que por tantos motivos dança deste jeito, monta cenas deste jeito, propõe esta obra, neste momento.

O contexto é informação externa, que molda e define completamente as possibilidades de existência do interno da obra. A obra é inserida no contexto, que é maior que ela. Saber do contexto, entender do contexto, sempre ajuda, mas em certas propostas é essencial. 

Tão essencial quanto um libreto de balé clássico. O público não precisa adivinhar que aquela bailarina é a fada e que a mágica dela tem o propósito tal, o texto vai te dizer isso. O público não precisa adivinhar que aquela coreografia é um comentário sobre a situação política atual, o contexto vai te dizer isso.

Quando uma dança é apresentada dentro de seu contexto, e pra pessoas informadas sobre esse contexto, fica parecendo que o contexto é transparente, que ele não existe em separado. Mas é só você deslocar uma obra alguns anos na história pra ver que o contexto é bastante opaco e, se não declarado, pode se tornar inacessível.

A existência de trabalhos profundamente ligados ao seu momento histórico imediato anima a percepção de que “tudo é dito pela apresentação da obra”. Não é. Um tanto é dito pelo conhecimento que temos desse momento. Mas perceba que esse “temos” é extremamente relativo, variável, e, se levado como obrigatoriedade, arrisca eliminar uma grande quantidade de público potencial.

Como resolver esse impasse, que é de acessibilidade? Com comunicação.

Assim como um libreto pode ser necessário pra apresentar a narrativa dançada num balé, muitas obras precisam oferecer informação sobre o contexto que discutem. Por enquanto, a melhor estrutura que eu vejo pra isso continua sendo o programa de sala, em seus vários formatos. 

De um parágrafo atrás de um cartão aos grandes livros que desenvolvem pensamento artístico sobre as obras (imensa saudade minha, tragam de volta os programas em formato grande!), os programas abrem um espaço de proximidade para o público. Eles dão uma chance pra quem não acompanhou o trabalho e desenvolvimento de uma ideia, adentrar nesse universo, compartilhar esse contexto — que é social, mas também é artístico, é criativo, é estético, é pessoal.

O drama do momento é que os programas estão em baixa. Com a fraca desculpa da motivação pandêmica, os materiais físicos têm desaparecido, e os digitais tem diminuído. Cada vez mais, sabemos menos sobre as condições que levam à existência daquelas obras. E, com isso, fica difícil se sentir parte. 

Comunicar não precisa ser explicar “eu queria dizer tal coisa com isso”. Na maioria dos casos, o que falta mesmo é contexto, é saber do que faz chegar a esse “isso”. É uma questão de partilha. O artista convive com a obra por meses; o público, por minutos. Toda a proximidade que conseguirmos construir pra esse momento é essencial.

*Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança

*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete a opinião do Portal MUD.

Henrique Rochelle

Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.