Chavoso da USP durante a CPI dos Pancadões. Foto: Douglas Ferreira | REDE CÂMARA SP.
No final do mês de agosto, aconteceu na Câmara Municipal de São Paulo o primeiro dia da CPI dos Pancadões. Apesar dela ter como finalidade “investigar possíveis omissões dos órgãos públicos municipais na fiscalização de perturbação do sossego” [1], alguns vereadores que compuseram a Comissão se dedicaram a instigar a associação dos bailes funks com a criminalidade, uso de drogas e com o incentivo ao consumo de conteúdos explícitos. Um dos convidados à depor na CPI foi o sociólogo e comunicador Thiago Torres, mais conhecido como Chavoso da USP, que com uma atitude combativa, confrontou essas percepções equivocadas e propôs a ampliação do debate, considerando o impacto do ensino das ciências humanas na produção e no consumo crítico do Funk:
“Atacam a sociologia, atacam a filosofia, que são as disciplinas que fazem com que a gente entenda a sociedade, reflita criticamente, tá ligado? Então, se você tira essas disciplinas, priva a população do acesso a esse tipo de conhecimento. Como depois você vai falar que a pessoa está cantando aquela realidade de uma forma acrítica? Ela só está descrevendo o que ela está vendo. De fato, ela não consegue criticar aquilo, porque aquilo se tornou tão natural para ela que ela só vai falar daquilo como se fosse a coisa mais natural do mundo. Então, se a gente quiser, inclusive, parar com essas letras, que dizem que supostamente faz apologia a isso ou aquilo, o que tem que fazer é ter mais aulas de sociologia nas escolas, mais aulas de filosofia e de ciências humanas para que esses jovens e adolescentes consigam criticar a realidade.”
Fazendo eco à fala do Chavoso da USP, a filosofia, a sociologia, a história e a geografia expandem a compreensão crítica do mundo. No entanto, há um elemento adicional que, relacionado a essas áreas do conhecimento, também propõe experiências práticas capazes de abrir possibilidades para a construção de uma realidade social transformada: o ensino da dança na escola.
Assim como as ciências humanas, o ensino da dança também é constantemente ameaçado. A exemplo dessa afirmação, em maio deste ano, o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) decidiram excluir as linguagens artísticas de Dança e Teatro da Prova Nacional Docente (PND), uma avaliação “estruturada para facilitar a realização de concursos públicos e demais formas de seleção, permitindo que estados e municípios a utilizem na admissão de docentes” [2].
Marcia Strazzacappa, em 2001, já alertava que “embora a LDB 9394/96 garanta o ensino de Arte como componente curricular obrigatório da Educação Básica representado por várias linguagens – música, dança, teatro e artes visuais – raramente a dança, a expressão corporal, a mímica, a música e o teatro são abordados, seja pela falta de especialistas da área nas escolas, seja pelo despreparo do professor”[3]. Esse alerta evidencia que a decisão do MEC e do INEP, além de desrespeitar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), compromete o acesso de milhares de estudantes às linguagens artísticas, prejudica o desenvolvimento crítico em relação a essas práticas e, consequentemente, impacta suas formações.
A dança é um campo de conhecimento capaz de confluir dimensões sociológicas e antropológicas que confrontam a realidade estrutural do nosso presente na sociedade. Por meio da criação do movimento corporal, é possível desorganizar as ocupações convencionais do tempo e do espaço, romper com os sentidos de propriedade e criar instantes coletivos de aprendizagem que renovam e fortalecem o exercício da autonomia. A percepção de uma pessoa, presente na geografia espacial, na condição de criadora e propositora de ideias e saberes que partem do corpo, constitui uma ameaça direta aos movimentos institucionais que criminalizam manifestações culturais e forjam as desigualdades sociais.
O projeto de boicote ao ensino de dança e de outras linguagens artísticas na escola está unificado ao ataque às ciências humanas. Nesse sentido, fica nítido que a motivação por trás desse projeto é limitar a capacidade de reflexão e questionamento das pessoas, colocando-as em posição de passividade, de reprodutoras de padrões sociais e econômicos sem questionamento.
Após a exclusão da Dança e do Teatro da PND, as entidades ANDA (Associação Nacional de Pesquisadores em Dança), ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas), FND (Fórum Nacional de Dança) e OPAE (Organização Paulista de Arte Educação) entraram com uma ação judicial e conseguiram uma liminar que obrigava MEC e INEP a reintegrar as linguagens. No entanto, essa liminar foi derrubada. Diante disso, as associações entraram com recurso e o deputado Tarcísio Motta (PSOL) solicitou uma audiência para que MEC e INEP esclarecessem os motivos da exclusão. Trata-se de uma luta em curso, que evidencia o desgaste constante de reafirmar, ano após ano, a importância da dança e do teatro na educação de crianças e jovens.
A disputa legal e política é apenas um passo: a resistência pela efetiva presença das artes e humanidades na escola continua como parte de uma batalha mais ampla contra a redução das possibilidades de reflexão, crítica e criação que essas linguagens oferecem à sociedade.
1 CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. CPI dos Pancadões. São Paulo: Câmara Municipal de São Paulo [site], s.d. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/comissao/comissoes-parlamentares-de-inquerito-cpis/cpi-dos-pancadoes/. Acesso em: 10 set. 2025.
2 FÓRUM NACIONAL DE DANÇA. O que está em jogo com a exclusão de dança e teatro da prova nacional docente. São Paulo: Portal MUD [site], 2025. Disponível em: https://portalmud.com.br/portal/laboratorio-da-danca/o-que-esta-em-jogo-com-a-exclusao-de-danca-e-teatro-da-prova-nacional-docente/. Acesso em: 10 set. 2025.
3 STRAZZACAPPA, M. A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola. Cadernos Cedes, Campinas, v. 21, n. 56, p. 143-157, 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/jG6yTFZZPTB63fMDKbsmKKv/?lang=pt. Acesso em: 10 set. 2025.
Rubia Galera