Já começou? O início do ano tem uma cara de ressaca coletiva, com as pessoas e a dança ainda engatando
Todas as pausas batem com um tanto de intensidade. Retomar, retornar, voltar a alguma atividade tem sempre o arrastar lento das coisas ainda engatando, que demanda um tanto de energia extra e disposição pra se colocar de volta em rota. O começo do ano tem essa cara. A piada eterna de que o ano só começa depois do carnaval sempre me faz refletir sobre o que acontece nesse período peculiar, que não é de férias coletiva, mas tem cara de ressaca coletiva.
Nos palcos de dança, o começo do ano ainda é amarrado de fins: a maioria do que assistimos tem a ver com o encerramento de projetos. Tem lógica: O ano não teve nem 45 dias ainda, tem muito pouco que dá pra ser proposto, estruturado e realizado dentro desse tempo. E muito do ano passado que não teve tempo de terminar.
Pra além da prática, tem um lugar de misticismo com os novos ciclos. Janeiro e fevereiro ficam nesse lugar que contrasta a dinâmica do ano novo gregoriano (1 de janeiro), com a espera do ano novo lunar (calendário chinês), e olhando de canto o ano novo astrológico (jajá o sol volta pra Áries, o primeiro signo do zodíaco).
Existe um tanto de calma nesse período, efeito dessa ressaca coletiva. Mas muitas estruturas já aprenderam a aproveitar dessa aparente calma pra ocupar esse tempo com outras emergências. É o efeito “já que”, que uma tia me apresentou uma vez, comentando sobre um período entre empregos: “já que você não tá fazendo nada…”, que vem junto de um pedido aparentemente irrecusável, mas que aparentemente ninguém faria pra alguém de fato ocupado, ou pra um período, de fato, normal. Já que estamos nessa ressaca coletiva, porque não aproveitar pra tirar o atraso, pra terminar alguma coisa, pra correr com uma proposta de menos tempo?
Assim como as minhas escritas e o ritmo das divulgações, a dança normalmente começa o ano ainda engatando. Esse ano, dois efeitos se sobrepõem, deixando o período ainda mais confuso. De um lado, tem um tanto de coisa que precisa amarrar suas pontas, encerrar seus projetos, cumprir prazos, e apresentar. De outro lado, pra além da ressaca anual, uma ressaca pandêmica, que parece a qualquer momento pronta pra engolir o mundo e fechar tudo de novo. Da discussão dos riscos aos delírios coletivos, todo mundo encara a situação com uma abordagem temerosa, traumatizada, e extremamente desconfiada. São tempos de poucas certezas.
Em meio a tantas discussões sobre linhas de chegada, fim da linha e luzes no fim do túnel, na verdade o ano vai arrastando a sua linha de partida. Quando começa? Já começou? Mas quando começa de verdade? Vamos tateando 2022 como se entrássemos em uma performance instalação escura e sem saber o que acontece. A sensação, confesso, não é das melhores. Mas sempre podem vir boas surpresas. E a dança que vai acontecendo nesse momento de fim-de-começo-de-ano-e-começo-de-ano-pra-valer ajuda a colocar algum tom de normalidade na coisa. Ali, no teatro, eu esqueço que estou de máscara, esqueço as limitações dos protocolos. Não é um “novo normal”, é só estar na plateia. A recuperação de uma felicidade familiar que vai aos poucos deixando a ressaca só na memória.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
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