Dança: Uma ode ao amor na peça Contado pela minha mãe

Crédito das Fotos: Myriam Boulos

A peça de dança Contado pela minha mãe, do coreógrafo Ali Chahrour junto com Hala Omran, atriz síria, seus familiares, Leila Chahrour e seu filho Abbas Al-Mawla, em conjunto com a banda electro-acústica Two or The Dragon, formada por Ali Hout e Abed Kobeissy, foi performada no palco do auditório do D. Maria II, em Lisboa, a convite do Alkantara Festival 2021.

Ali Chahrour nasceu e trabalha em Beirute, pertence a uma geração de jovens coreógrafos e seu trabalho já alcançou o mundo. Fez sua formação em teatro no Instituto Nacional de Belas Artes em Beirute. Ao entrar em contato com a expressão corporal, descobriu a dança e, desde então, iniciou um caminho de formação em vários países europeus, de criação e de pesquisa própria e autoral. De sua autoria são as peças: Fatmeh (2014) Leila’s Death (2015), May He Rise and Smell the Fragrance (2017), seguindo ainda uma trilogia sobre o amor em: Night (2019), Told by my mother (2020 com estréia em 2021), The Love Behind My Eyes (2021). Para Chahrour, suas criações só fazem sentido quando feitas em Beirute, uma vez que considera que suas peças só se tornam completas quando são mostradas e recebidas pelo público libanês. Tais criações são também um gesto de amor.

Told by my mother, traduzido por Contado pela minha mãe, tem como enredo a história verdadeira de duas famílias, a da tia de Ali Chahrour, Fatmeh e seu filho Hassan, e da prima de Fatmeh, Leila e seu filho Abbas. Ali Chahrour nos conta que desde 2013 queria realizar uma performance com sua tia Fatmeh e sua prima Leila por causa de suas lindas vozes e presença. Fatmeh costumava sempre cantar, amava a música e a dança. Chahrour nos descreve uma cultura libanesa festiva, alegre, libertária, que rumou à derrocada subjetiva e objetiva pelas guerras, grandes crises econômicas e violência de toda sorte, sem ainda mencionar a explosão do porto em Beirute, que destruiu parte da cidade, e a Covid 19.

Na cultura libanesa também, quando uma mulher se casa com um estrangeiro, não lhe é permitido passar ao filho sua nacionalidade. Fatmeh era casada com um homem sírio, dessa forma, todos os anos eles eram obrigados a irem até lá para renovar os seus documentos. Seu filho Hassan, que não pertencia a nenhum partido político, descrito por Ali como um menino muito frágil que adorava cantar com a mãe, acabou por viajar sozinho para Síria para renovar seus documentos, desaparecendo sem deixar nenhuma pista. Sua mãe, então, inicia uma busca incansável para encontrá-lo até que anos depois, ela recebe um telefonema da embaixada da Síria em Beirute dizendo que seu filho Hassan havia falecido na prisão, e que eles tinham seus pertences para lhe entregar: uma camiseta, um celular e uma identificação. Fatmeh dirigiu-se então até a embaixada, mas ao chegar lá exigiu junto às autoridades o corpo do filho como prova de sua morte. Sem sucesso, ao chegar em casa sentou-se quase imóvel em uma cadeira e, com intensos e pequenos gestos com o braço e um levantar de cabeça, foi afastando todas as pessoas que chegavam até ela para lhe prestar condolências ou para confortá-la.

Para Fatmeh seu filho estava vivo. Esse gesto intenso de braço e cabeça são matéria constantemente recorrente de movimento na peça, uma espécie de leitmotiv coreográfico. Entretanto, conforme colocou Ali Chahrour, no debate que se seguiu após a sua última apresentação do Alkantara Festival e também no workshop que ministrou em Lisboa no mesmo contexto, que independente de todas as emoções envolvidas na história e a situação atual de Beirute, nenhum profissional ou bailarino amador seria capaz de reproduzir tal gesto e sua intensidade: “um movimento que a arte não nos pode ensinar”. E que nada poderia também expressar o sentimento de uma mãe à procura de um filho desaparecido. O que constituiu para ele uma grande questão que permeou todo o trabalho, trazendo também hesitações se deveria continuar ou não na finalização e concretização da peça.           

Outra questão que se colocou foi a de como lidar com sua própria história pessoal e ao mesmo tempo poder manter distância: como coreografar essas histórias? Contudo, para ambas as questões, Chahrour acreditou que, por meio do corpo e da dança, seria possível apresentar algumas pistas da história em gestos, em música, em canto. Contado pela minha mãe é uma performance sobre a presença do corpo, em que se revelam qualidades individuais dos performers sem a necessidade de se atuar a história de modo teatral ou com movimentos ilustrativos, bem como removendo as emoções que eles podem carregar na face, ou seja, são corpos que reagem e se afetam com a história por meio de gestos dançados.

Fatmeh por sete anos procurou pelo filho até que, em 2018, ela descobriu um cancer e, em sua última ida ao hospital onde veio a falecer, ela pediu a filha, irmã de Hassan, que transmitisse uma mensagem para ele, que se um dia voltasse para casa, era para lhe dizer que fizera de tudo para encontrá-lo. É agora a sua irmã que o procura seguindo a mesma trajetória de sua mãe. No caminho dessa história, temos também o enredo de Leila e seu filho Abbas. Essa história é também sobre a força de uma mulher que enfrentou um dos maiores partidos políticos porque queria impedir o filho de se juntar a ele para ser treinado como um soldado-mártir e ir lutar na Síria. Mas o desfecho dessa história foi diferente, Abbas literalmente teve que escolher se iria dançar nessa apresentação ou se tornar um mártir no campo de batalha. Chegou a partir para cumprir o destino de ser soldado, deixando a mãe na expectativa de que ele morreria. Mas voltou a tempo para integrar a performance, fazendo a escolha pela dança: Leila e seu filho Abbas são intérpretes do espectáculo.

O pano de fundo da peça passa por uma visão dura do Líbano e de alguma forma também nos remete a Síria e seus abusos sistemáticos, como, por exemplo, na forma arbitrária que civis sírios são detidos ou sequestrados pelo governo, por grupos antigoverno e terroristas, quando sabemos que Hassen morreu na prisão. A condição da mulher também se impõe, uma vez que é a mulher que procura o seu filho desaparecido, é a mulher que luta contra políticos poderosos, é a mulher que canta aos mortos nos rituais fúnebres, é a mulher que faz o luto, mas não é a mulher que dá a nacionalidade ao seu filho. Ali Chahrour dignifica a mulher em seu trabalho, nele a mulher é que oferece nacionalidade à peça.

As histórias contadas nos remetem a um tempo que passou e não passou. Um presente suspenso pela busca do filho e do irmão, um luto interrompido e também suspenso. As imagens construídas pelos gestos, incluindo a voz de Hassan, captada por uma gravação antiga; as canções que Fatmeh cantava, agora na voz de Leila; a beleza dos instrumentos, como a do aud, sobretudo quando apontada por um dos músicos como uma arma em direção a Abbas; a melancolia no desenho de luz; os ruídos e sons, somados a abordagem à música árabe na realização da trilha sonora são aliadas ao horror por trás do enredo das histórias. A crueza dos fatos, não há ironia, é testemunho e depoimento, parece não haver distância entre o acontecimento e o relato. O que há é uma relação direta com os fatos vividos e a dança, sobretudo revela a presença forte dos performers que dá organicidade ao coreográfico. Não existe delírio, nem fantasia e nem sonhos, é a realidade diante de um mundo opaco diante de sucessivas tragédias. É a narração da brutalidade inaudita apreendida por dentro das subjetividades, mas algo quer se fazer audível.

Não há naturalização da violência dos acontecimentos, não existe a impossibilidade da interpretação do que foi vivido. O trabalho em questão não tem apenas como dramaturgia contar essas histórias, mas contar a história de mulheres fortes, dessa forma, a violência não é a matéria da peça. A matéria é o amor, é a liberdade, é a separação. Quem ocupa o palco são as mulheres representadas por Leila e Hala. Mas essas mulheres poderiam ser perfeitamente outras mulheres, as que perdem seus filhos para o tráfico ou para milícia, para os soldados ou para as chacinas. A peça é sobre pequenas vitórias, como claramente ter Abbas optado pela dança e não ter se tornado soldado-mártir. E pelo lado de Fatmeh, por mais que ela não tenha conseguido achar seu filho, ela inspira e inspirou outras mulheres: talvez, se não fosse sua luta, não teríamos Abbas na performance.

Em matéria de movimento, a dança do ventre se faz presente, dançada por Ali Chahrour e Abbas Al-Mawla que parecem ressignificá-la como prática performativa. Sua presença em vários trabalhos de Ali Chahrour abre possibilidades de reflexão sobre arte, sobre o corpo e nossos próprios limites e preconceitos. Há um movimento em que Chahrour inclina seu corpo inteiro no corpo ajoelhado de Abbas, estabelecendo um equilíbrio frágil, mas estável e pleno de ternura, no qual o olhar é para o futuro. Seguem outros movimentos, mas não há virtuose neles: seria uma redundância, pois formam imagens igualmente fortes como a ida de Leila ao chão a rolar pelo espaço, relacionando-se com o solo, a terra.

As obras de Ali Chahrour fazem também a ponte entre a dança contemporânea e a cultura tradicional árabe, diminuindo no país a lacuna que há entre elas, o que se confirma em suas estreias em Beirute quando o público lota o teatro. Chahrour nos diz sentir a necessidade de fazer dança em Beirute agora mais do que nunca. A consciência não desaparece, ao contrário nos coloca diante de uma história que se agravou: perdeu-se tudo em Beirute, casas foram destruídas, o dinheiro no banco foi de certa forma confiscado, pessoas queridas morreram ou foram embora. Mesmo assim, foi no teatro que as pessoas puderam se juntar, partilhando um momento íntimo e comum.

O público internacional participou recebendo socos diretos no estômago. O público com empatia chorou, ou se paralisou, quem tem filho tentou sufocar o soluço, ao mesmo tempo sentimos no corpo a vontade de bater palmas junto com os performers nos momentos mais festivos da peça, momentos esses que remetem o que é a cultura libanesa: celebração, amor, dança e música.

Maíra Santos

Maíra Santos

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Bacharel em Ciências Sociais pela USP, Licenciada em Dança pela Universidade Anhembi-Morumbi, tem um mestrado em Antropologia Social pela Unicamp e um Doutoramento em Dança pela FMH – Universidade de Lisboa. Foi bolsista Capes no programa Doutorado Pleno no Exterior (2014-2018-Brasil). Leciona regularmente dança contemporânea e dança teatro para jovens, adultos e crianças. É membro integral do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa (CET-FLUL), pesquisadora do grupo Etnografia e História das Práticas Artísticas e das Línguas das Áfricas (EHPALA Unifesp), Pós-Doutoranda em Dança pela FMH – Universidade de Lisboa, coordenadora e bailarina do grupo Raíz Teatro. Atualmente, os seus interesses vão da estética e história da dança, teatro comunitário aos estudos culturais e processos criativos em dança (https://mairasantos.dance) .