Foto: Marcelo Machado
Por Adriana Celi Castelo Gomes e Júlia Paschoalino Robert
Apresentado na 14ª Bienal Sesc de Dança, o espetáculo “Sociedade dos Improdutivos”, da Cia Sansacroma, propõe uma experiência cênica marcante. Partindo de questões sociais, o grupo traz à tona investigações em torno da loucura, da produtividade capitalista e do impacto dessas tensões na vida dos corpos negros. No contexto da decolonialidade e sob uma perspectiva africana, a obra coloca em cena a dualidade entre o corpo considerado improdutivo, associado à loucura e marginalizado socialmente, e o corpo produtivo, atrelado à lógica do capitalismo, destacando como tais problemáticas estão ligadas de forma profunda aos marcadores de raça e classe.
Fundada em 2002, pela diretora artística Gal Martins, a Cia Sansacroma é um grupo de dança criado na periferia sul de São Paulo. A partir de uma criação cênica híbrida, as obras do grupo investigam a poética dos corpos negros, em uma sociedade marcada por desigualdades sociais. A periferia é guia para os processos artísticos do grupo, que convertem denúncia em potência criativa, através de questões urgentes da contemporaneidade.
“Sociedade dos Improdutivos” é um espetáculo que se origina a partir de pesquisas teóricas e de campo, incluindo estudos sobre loucura, de autores como Foucault e Nise da Silveira. Segundo Gal Martins, a questão que orienta a dramaturgia é: “Como pensar saúde e cuidado para a população negra se o sistema insiste em nos tratar como sintoma a ser contido?”
A obra coloca a ótica ocidental sobre a loucura em contraponto com outras possibilidades de existência, como a visão de mundo Dogon, da cultura africana do Mali, onde a suposta loucura ocidental, trata-se, na verdade, da ancestralidade e dos modos de vida dos povos negros. A proposta reforça o quanto esta e outras distorções da colonialidade desencadeiam historicamente inúmeras violências, principalmente a diferentes grupos étnicos.
Ao entrar no espaço da apresentação, a estrutura cênica proposta causa estranhamento. São duas plateias, separadas por uma cortina branca, que reparte a cena ao meio. Quem assiste tem acesso a apenas um lado completo. Ao longo do espetáculo, a instalação é provocativa e atiça a curiosidade. Através de um jogo de iluminação, as duas cenas se conectam e as luzes e sombras criam espaços de vazão para outros imaginários.
Aqui, para esta resenha, as autoras assistiram ao espetáculo no mesmo dia, porém de lados diferentes, uma em cada plateia. Cada lado representa uma perspectiva da saúde mental: um traz a ótica manicomial da exclusão, em contraponto ao outro, que representa uma ótica antimanicomial, conduzida pelo controle químico na busca da produtividade.
De um lado, três intérpretes vestidos de branco e segurando espumas entre os dentes começam o espetáculo amontoados no chão no canto esquerdo da cena. Quando começam a se levantar ganham mais energia e expressão. Fazem gestos simples nas movimentações, mas completos pela interpretação.
Os intérpretes retiram as espumas da boca um do outro. Mexem a boca, a língua e emitem sons, talvez em uma tentativa de falar. Apontam os dedos para o público e fixam o olhar no fundo da plateia. Os gestos buscam representar corpos entendidos como improdutivos. Não se guiam exatamente pela definição de insanidade, mas carregam potência e expressão, em uma interpretação que se distancia de conceitos de normatividade.
Na cortina branca que divide a cena, os movimentos se confundem entre as luzes e as sombras. As figuras se misturam, se complementam e se dividem. Por um instante, os três intérpretes estão sentados no chão, mas a sombra na cortina é de duas pessoas com os pés para cima, de ponta-cabeça. É o sinal mais preciso sobre o que acontece do outro lado.
Do outro lado, na cena antimanicomial, as sombras refletidas dos corpos em estado manicomial trazem a sensação de assombro, de grande conflito e desorganização mental, para os corpos em representação da liberdade por meio do controle químico e da exaustão da produção. O estado manicomial transborda através do imaginário das sombras para outra cena, como fantasmas que seguem aprisionando esses corpos supostamente livres.
A coreografia se estabelece por meio de uma fisicalidade intensa que atinge diferentes estados corporais, tensão, resistência, exaustão, devaneio e força, todos tecidos pela perspectiva da Dança da Indignação, numa coreografia que emerge com grande potência autoral dos intérpretes.
Quando a cortina é aberta, o ambiente ganha novas possibilidades e um outro estado começa a se instaurar em cena. Os dois universos se encontram, sustentados num primeiro momento em seus contextos prévios, estereótipos, que aos poucos começam a se dissolver, dando espaço para os corpos negros em suas matrizes africanas. A dor e a resistência seguem juntas, denunciando as marcas de muitas violências estruturais, mas a ancestralidade e a espiritualidade passam a atravessar as narrativas, trazendo para cena a sensação de uma força superior que segue sublime até o final do espetáculo.
A obra, para além de denunciar o racismo estrutural sofrido e a lógica capitalista, especialmente no campo da saúde mental, se revela como uma experiência sensorial potente, que dá margem para que o público possa vivenciar diferentes óticas e percepções sobre sua concepção dramatúrgica. O estranhamento provocado pela estrutura cênica potencializa a experiência crítica do espetáculo e, não apenas desorganiza o olhar, mas cria condições de direcioná-lo a partir das emoções, memórias, identificações e incômodos de cada espectador, criando muitos espetáculos em um só.
Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

Adriana Celi Castelo
Gestora Cultural, artista da dança e pesquisadora. Doutoranda em Artes da Cena no IA Unicamp. Mestra em Arte-educação pelo IA UNESP. Graduada em Educação Física e Pedagogia, pós-graduada em Linguagens da Arte pela USP e Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona. Atuou como diretora de cultura na SECULT de Barueri, e como coordenadora de área dos Cursos Livres e de Extensão Cultural da São Paulo Escola de Dança. É presidente fundadora do Instituto Cultural Artevida.

Júlia Paschoalino Robert
É formada em Jornalismo pela Unesp/Bauru (2021) e certificada em Gestão em Produção Cultural pela São Paulo Escola de Dança (2024). É mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, do Instituto de Artes – Unicamp. Integrante do Grupo de Pesquisa Historiografia da Dança no Brasil: Conexões e Reverberações, conduzido pela Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães. Em 2024, participou do Focas – 2º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde. Tem publicações para o Estadão, Terra e Mídia Ninja.
PPG Artes da Cena/UNICAMP