A dança e sua capacidade de ensinar

No dia 4 de abril de 2025, no Centro de Referência da Dança (CRD) da cidade de São Paulo, no Vale do Anhangabaú, ao som de um fervoroso ensaio de uma festança que ocorreria algumas horas após a apresentação de estreia do novo trabalho da Cia Pássaro de Presságio, foi apresentada a obra coreográfica intitulada O mar não me obedece. Com direção de Leonardo Villa, performance de Natália Karam e Luiz Ragusa, e produção de Josie Berezin.

A Cia Pássaro de Presságio dedica-se à criação de obras em teatro físico e audiovisual. Em O mar não me obedece, a dramaturgia nos convida a refletir sobre questões que permeiam a sede humana por conhecer e dominar as verdades, além do desprezo pela natureza, ao nos colocarmos como seres superiores, guiados pela razão como mastro condutor da ética humana. A obra propõe esse debate por meio de metodologias de criação em dança, como a relação dos corpos com a gravidade, a temporalidade, os trabalhos de chão — como a queda e a recuperação —, sendo notável também o aprimoramento corporal através do condicionamento proporcionado pela arte marcial jiu-jitsu. No entanto, uma abordagem específica capturou especialmente minha atenção: as bactérias.

Foi em 2021 que me deparei com um texto primoroso do crítico e curador de arte Marcello Dantas, intitulado “O amor é uma bactéria”, publicado na Revista Gama. Desde então, em minha vida privada, passei a cuidar, de certo modo, mais atentamente de minhas amigas e parceiras bactérias. De acordo com Dantas — e com outros pesquisadores da biologia e da medicina que venho lendo (peço desculpas por não me lembrar de todos os nomes) —, nossas bactérias são muito mais importantes do que imaginamos e do que costumamos valorizar. Elas detêm o poder de influenciar desde o funcionamento fisiológico do corpo até a psique, se é que esses dois mecanismos podem mesmo ser analisados separadamente. E, para quem afirma que a arte não produz conhecimento, pergunto: será que eu teria prestado atenção nas minhas bactérias se não fosse por um texto que considero genial, como o de Dantas? Provavelmente, não.

Em consonância com essa questão — e com a resposta positiva apresentada em “Da pergunta à cena: Perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa”, do pesquisador e ator Mateus Fávero (2025, p. 26) —, quando ele se pergunta: “Às artes geram conhecimento?”, afirmo que sim. A arte pode nos conduzir à produção de conhecimento tanto sobre sua própria linguagem quanto sobre outras áreas. Em O mar não me obedece, por exemplo, a dança serviu como suporte para a elucidação de ideias oriundas das chamadas ciências duras.

No entanto, O mar não me obedece é, antes de tudo, um trabalho de pesquisa e lapidação em dança, ao colocar as células de movimento como agentes fundamentais na partilha dos conceitos explorados. Ainda em consonância com Fávero (2025, p. 44): “Porque pesquisar é buscar o desconhecido, aquilo que ainda não se sabe […] O ato de pesquisar deveria atentar, invariavelmente, contra o disciplinamento dos saberes, na busca pela expansão das fronteiras um dia já cristalizadas.” Por conseguinte, a cenografia da obra forneceu o suporte para que as ondas se materializassem nos corpos dos performers em cena. A partir das quedas e suas relações com o chão, o movimento paradoxalmente apresentava a sutileza e a força das ondas, que, aos poucos, capturavam para si os círculos desenhados a giz no chão e os transpunham para seus corpos.

Assim como O mar não me obedece, ao evidenciar tantas problemáticas que, enquanto espécie, estamos causando à natureza e a nós mesmos, o espetáculo me levou a perceber que eu, nos últimos tempos, não estava dando a devida importância às minhas amigas bactérias. Eis uma das grandes funções da arte — aquela que desfruta da nobreza e da maestria: a produção de conhecimento. Saí do Vale do Anhangabaú ao som das batidas do ensaio e fiz questão de passar em uma venda para comprar um probiótico. Minhas bactérias agradeceram. Obrigada, dança!

 

REFERÊNCIAS

DANTAS, Marcelo. O amor é uma bactéria. Coluna- Gama Revista, 2021. Disponível em: <https://gamarevista.uol.com.br/colunistas/marcello-dantas/o-amor-e-uma-bacteria/>Acesso em: 19/04/2025.

FÁVERO, Mateus. Da pergunta à cena: perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa. São Paulo: Annablume, 2025.

Nailanita Prette

Nailanita Prette

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Mestre em Artes – linha de pesquisa Artes da Cena, pela UFMG; licenciada e bacharel em Dança pela UFV; técnica em Dança pela ETAM Santa Cecília. Artista das Artes do Corpo com ênfase em Dança Contemporânea e Performance, com trabalhos autorais e com artistas parceiros. Professora de Dança e Artes na rede pública de ensino e no curso técnico de Artes Visuais, ambos da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Pesquisadora em Dança e Teatro Físico com interesse nas temáticas: Analise do Movimento, Técnicas Corporais, Poética do Corpo, Processo Criativo em Dança, Improvisação em Dança e Modos de Mover Contemporâneos. Se interessa na teorização da Dança a partir da prática, do corpo em movimento, uma das vertentes de trabalho que vem se arriscando é a Critica em Dança.