Em cena, escolhas pessoais são escolhas estéticas. Um corpo é pessoa, e ele afeta o que entendemos das obras
O corpo em cena sempre sofre um tanto de ataque por exposição. Aquilo que é colocado à vista parece poder ser discutido, debatido, questionado pelo outro. E, historicamente, nem sempre tivemos bons limites com isso — com entender que o corpo, mesmo em cena, é sujeito, é pessoa.
A tradição da dança cênica mistura dois aspectos opostos: se por um lado existe uma valorização do individual, daquilo que cada um tem a contribuir unicamente, por outro lado existe um apagamento da especificidade, uma noção de possibilidade de substituição — em vários trabalhos, por mais que a qualidade única de um bailarino seja desejada, esse bailarino em princípio poderia ser substituído por outro.
O efeito é concreto: quantas danças você já viu que de fato só poderiam ser realizadas por aquela pessoa, naquela situação, naquele momento? Se a arte clássica trabalhava em certas uniformidades, o caminho da arte moderna investiu pesado na pessoalidade, e a pós-modernidade abriu um espaço pra arte-acontecimento, quase irreprodutível — mas só quase, pra ser sincero.
Nesse espaço, olhar pra quem dança é sempre um terreno complexo. Isso passa pelas escolhas mais profundas de técnica, de característica, de preferência, de estilo. E perigosamente abre espaço pra questionamento das escolhas pessoais. Como eu disse, nem sempre fomos bons em entender que o corpo em cena é gente.
Foi essa dificuldade que abriu espaço pra gerações de discussão sobre peso de bailarinas. Como se o corpo da artista pudesse ser questionado, publicamente, por ser colocado em cena publicamente. Hoje em dia, frequentemente me coloco nessa sinuca entre o que cabe discutir e o que não cabe quanto aos corpos em cena.
Em cena, escolhas pessoais se tornam escolhas estéticas. E não, não dá pra abrir o campo pra um “tanto faz”. O corte e a cor do figurino podem causar tanto efeito estético quanto o corte e a cor do cabelo. O problema é que o figurino o bailarino tira depois da apresentação, enquanto o cabelo fica. Outras escolhas pessoais às vezes simplesmente incomodam, porque poderiam ser removidas pra cena. Pra mim, brincos, acima de tudo. Eu não canso de me surpreender com apresentações em que os bailarinos continuam com brincos, alargadores, piercings e outras peças em metal. É o pânico do “não é possível que esse diretor não veja que isso reflete a luz tão bem pensada pra essa obra”.
Esse é o ponto em que a coisa vai misturando os problemas: da valorização do ser quem se é com a desvalorização do cuidado com a cena enquanto elemento construído para outro.
Também sempre reparo em tatuagens aparentes. Mais de uma vez fiquei intrigado com as tatuagens que apareciam na cena e que em princípio não deveriam ser parte da obra, ainda que sejam parte dos indivíduos. Nunca cheguei a uma conclusão. Existiria solução? Mais que isso — existe um problema? Na problematização da falta de cuidado histórico com falar do outro e do corpo do outro, vai se abrindo uma brecha para não se falar do elemento fundamental das artes do corpo.
A arte contemporânea travessou fronteiras entre o indivíduo e a arte. Quais as fronteiras que ainda existem para o corpo? Existe limite para a pessoalidade e seu atravessamento de propostas estéticas? Quando é necessário / é possível / é educado / é desejado / é ético falar sobre o corpo do outro?
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.