Uma andorinha só não faz verão. Quantas vezes uma obra precisa ser dançada? Qual o tamanho de uma temporada?
Você provavelmente já ouviu dizer que uma andorinha só não faz verão. Uma apresentação única também não faz uma temporada, ainda que frequentemente seja tudo que a dança tem pra oferecer. Aquilo que é praticado, o como as coisas têm funcionado, parece sugerir que uma temporada de dança tem três dias (sexta a domingo), ou talvez quatro (começando na quinta). Se durar duas semanas já temos um grande diferencial. Três semanas e eu dou pulos de alegria. Se anunciarem quatro semanas, eu sinceramente vou conferir a informação umas oito vezes, porque é difícil de acreditar.
É até um lugar comum a noção de que as obras precisam de tempo vivendo em cena pra amadurecer. E faz absoluto sentido. Mas o que a gente encontra como público, em matéria de programação e difusão, frequentemente é o que deu pra fazer — e às vezes são só três apresentações. Quase que só pra não dizer que não teve resultado cênico compartilhado.
Essa noção é bem importante. A realização da dança pressupõe compartilhamento. Essa troca em tempo e espaço de convívio em presença. Gente na frente de gente, dançando. Se dá pra dizer que a obra está pronta desde que ela estreia e chega a esse momento de compartilhamento, também é verdade que o hábito com esse compartilhamento altera qualidades, entendimentos, possibilidades artísticas. As artes da presença são assim.
É difícil não comparar com o teatro, e as divulgações que eu recebo avisando da “curta temporada” que dura um mês e meio, da “curtíssima temporada” de duas semanas e dez apresentações — o que a esse ponto já seria quase que sonho de consumo na dança.
As lógicas que afastam essa relação da obra com as apresentações são muitas. A mais importante delas costuma ser financeira. Temos alguns sistemas de apoio à pesquisa e à criação — são poucos, têm seus problemas, e o dinheiro não dá pra muita coisa —, mas temos ainda menos possibilidades de circulação e difusão. Produzir uma obra custa dinheiro. Circular uma obra também custa dinheiro, mas já foi, em outros momentos, uma possibilidade de ganhar dinheiro — cada vez mais rara. Circular, apresentar, viajar, que décadas atrás eram um carro chefe na manutenção das companhias, são propostas cada vez mais custosas e menos custeadas.
O tempo do amadurecimento artístico da obra, sua frequência no palco, suas experiências junto do público, são termômetros importantes pra entender a cena da dança e seus caminhos. É o tipo de coisa que não se faz com uma obra só, nem com uma apresentação só. Nem três, e nem seis, na verdade. É coisa de temporada. De temporadas.
“Ada” é o sufixo das quantidades (a colherada é tudo que cabe numa colher), das multidões (criançada, papelada), e do prolongamento (é o que faz o riso se tornar risada, a noite, uma noitada). O tempo da dança pede continuidade. Continuidade é complexa e cara, mas quando acontece, enche os olhos, a agenda, e as possibilidades. E ai a dança deixa de ser aquele evento único, como a festa de fim de ano da escola. Aguardando seus públicos, seus cúmplices, seus artistas, ela se estende no tempo, e vira temporada.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
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