O ano acabando, e a gente olha pra trás: no meio de tudo que não aconteceu, a dança continuou.
Quando tudo parou em março, eu estava pronto pra aceitar que a gente olharia pra trás e veria 2020 como o ano que não aconteceu. Um instante de silêncio e luto antecipado, por tudo aquilo que não subiria pro palco, toda a arte que não chegaria à cena, tudo que a gente não poderia assistir.
Realmente, o 2020 que era esperado não aconteceu. O que veio no lugar dele foi uma coisa completamente diferente. Fruto da insistência e da necessidade de continuar, que apareceu em tantos campos da vida, e não menos na dança.
Fazer dança, mas também ver dança, pensar dança e falar de dança mudaram. Diversas pre-concepções foram desafiadas. Uma lista imensa de coisas que “não dá pra fazer de outro jeito” agora são feitas: a necessidade é a mãe das invenções (e da aceitação).
Sem poder sair de casa, me encontrei e escutei gente de vários outros lugares, de tantas outras experiências. O isolamento talvez aumente a receptividade. Mas, mais que isso, as dificuldades de microfonia nas plataformas têm forçado o aprendizado do silêncio. Lugares de fala e lugares de escuta nunca foram tão pronunciados.
Com a dança transmitida e a dança em video passamos a novas possibilidades. A cena digital escapa da capital, e se expande pelo país e pelo mundo. 2020 desafia a curadoria. A forma de produção e circulação empurram alguns aspectos da decisão de acesso. Eu revi obras que nenhum programador colocaria em cena hoje. Eu encontrei e reencontrei companhias de longe que há anos não chegam na minha cidade.
No domínio da hiper-oferta, arriscamos o labirinto de escolhas confusas. Mas são escolhas mais pessoalizadas. Pautadas por duzentas outras questões e limites, mas menos sujeitas ao que uma ou algumas pessoas decidiram que representa a diversidade da dança.
Eu pude ver os amadores, e a importância que a dança tem como prática, como convívio, como experiência sócio-pessoal. Mas eu amei ver os profissionais e o quanto a insistência deles nos mostra que essa gente faz porque gosta mesmo. Dança porque precisa dançar, porque precisa compartilhar o mundo através de dança.
Deles, eu pego a sugestão: vire o ano dançando. Sozinho em casa, com aquela pessoa que tem estado por perto, ou o seu grupinho de enfrentamento pandêmico. Mas não deixa o ano terminar esmorecido, amuado, caído. Comemora a força que a gente tem que ter pra seguir em frente, e dança. Dança, que 2021 precisa de mudança, atrevimento, persistência, luta, e tudo isso carece de muito movimento.
Que esse virada seja gostosa, e 2021 venha cheio de dança e bons ventos. Obrigado pela companhia e pela leitura esse ano todo.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.