Tem muita coisa que se vende como dança sem dançar. O que pode ser essa “dança” que não contém dança?
Existe um problema, mais ou menos histórico na arte, em lidar com os limites entre o que é uma coisa e o que é outra coisa. Na área da dança, dizer que algo “não é dança”, já foi um instrumento pra desconsiderar trabalhos. Hoje em dia, esse ponto me interessa mesmo enquanto uma fronteira problemática, frequentemente situada bem no acúmulo das funções de coreógrafo e diretor. Esse acúmulo tem trazido pra cena vários exemplos de obras que são bem encenadas e mal- (ou pouco-, ou não-) coreografadas.
Eu tendo a pensar nas artes como buscas de soluções. Propõe-se um tema, uma ideia, um assunto, uma lógica — qualquer que seja — e a arte busca soluções pra retratar essa proposta. É minha defesa — mas isso não é um consenso — que a dança é a forma artística que busca soluções através da coreografia, da organização do movimento.
Mas tem muita obra que tem uma hora de duração e só 5 minutos de solução coreográfica. E eu não consigo superar a impressão de que uma coisa que contém menos dança seja, ela mesma, menos dança.
Os lugares da dúvida, do entremeio, do incerteza das classificações são ótimos quando são cheios, plenos, preenchidos. Quando algo é tão dança e tão teatro, por exemplo, que já não conseguimos ver mais o contorno da fronteira. O que me incomoda são os desertos artísticos. Quando as partes são menos férteis, ai não tem articulação, ai a defesa teórica da fronteira borrada me parece só conversa, tentativa de estratégia de marketing, e me irrita. Não é dança e alguma outra coisa. Só é pouco dança, mesmo.
A forma mais fácil de identificar esses trabalhos é perceber os comentários que surgem ao final. Ai, frequentemente o que se comenta são outros elementos, que não a dança. “A música é ótima”, “o cenário é lindo”, “a ideia é genial”. Veja bem, nesse exemplo desses comentários, estamos lidando com algo bom. Quer dizer: não é algo nulo. Não é perda de tempo. Tem trabalho, tem arte, tem soluções. Mas talvez não contenha dança. Isso acontece porque uma ótima encenação não precisa ter dança. Uma grande direção não precisa ter dança. Uma luz deslumbrante não precisa ter dança. Uma música incrível não precisa ter dança. Mas dança precisa ter dança. E pra mim isso quer dizer que uma obra de dança precisa ter soluções coreográficas pra retratar seu tema/ assunto/ ideia/ proposta/ história.
A estratégia do discurso das fronteiras, a ideia de “estamos atravessando os limites entre as artes” ainda causa uns deslumbramentos que me fazem revirar os olhos. Sobretudo, ela me incomoda porque desvia a atenção: existe tanta proposta de dança que vale a pena olhar, e tem gente ali seduzida pelo canto da sereia que acha que redescobriu a roda, só porque apresenta “dança” que não contém dança.
Fato é que nem tudo é dança, e tá tudo bem. Isso não faz um projeto artístico ser menos bom, só faz ele não ser dança. No mundo tem exposições maravilhosas pra ver, e elas não precisam ter dança. Tem peças incríveis pra assistir, e elas não precisam ter dança. Performances intensas pra acompanhar, e elas não precisam ter dança. Concertos bem elaborados pra se escutar, e eles não precisam ter dança.
Mas quando me chamam pra assistir dança, ai sim, eu espero ver dança. E um artista que soluciona suas propostas e seus espetáculos por outros meios, pode ser um incrível iluminador, um músico excelente, um encenador deslumbrante, ou até um filósofo fundamental pro nosso tempo. Mas, não, não é coreógrafo. E tem um tanto de espetáculo por ai precisando de aviso “não contém dança”.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, com pós-doutoramento pela ECA/USP, onde foi Professor Colaborador, e é editor do site Outra Dança.