Crédito das Fotos: Cena do filme Cisne Negro com Natalie Portman, de Arren Aronofsky (2010)
Recentemente, alguns bailarinos de uma companhia tradicional de São Paulo formalizaram denúncias de assédio moral por parte da direção da companhia (veja matéria aqui). Pouco tempo depois, um movimento de bailarinas no Instagram, chamado Meu peso não me define, buscou conscientizar professores e bailarinos sobre clichês perigosos que são repetidos para os estudantes, e o risco de cobrar dietas e perda de peso sem oferecer um suporte de nutricionistas (vale a pena fazer a busca no Instagram por #meupesonaomedefine e assistir o IGTV da professora e bailarina Patrícia Montenegro.
Este texto não pretende abordar esses casos diretamente, e sim expor uma lógica maior que sustenta estas duas situações distintas. Ambas ilustram como pessoas em posição de autoridade acabam se sentindo confortáveis em exercer um controle irrestrito sobre os corpos de seus alunos, bailarinos e funcionários.
Longe de serem raras, essas situações expõem uma forma de pensar que é muito comum entre bailarinos, e apontam para a urgência de falarmos sobre a desnaturalização de práticas abusivas no meio da dança, em especial, do circuito da dança profissional ou profissionalizante.
Antes de seguir, é preciso destacar que não se trata aqui de apontar culpados, ou pintar uma relação binária de vítima e agressor. A ideia é decupar uma estrutura que fundamenta as relações de poder no meio da dança, a qual estabelece tacitamente a subordinação de alguns em favor do exercício de poder de outros como condição natural e necessária para o ensino e prática da dança.
Uma abordagem dialética permite que reconheçamos que a mesma pessoa que foi subordinada em determinado contexto poderá reproduzir uma lógica de autoritarismo em outro, seja porque foi ensinada a agir assim, ou porque inconscientemente está projetando ressentimentos em seus alunos/bailarinos. É a noção não declarada de que, se eu comi o pão que o diabo amassou, eu mereço estar onde cheguei; e isso de alguma forma me autoriza a dar do mesmo pão às pessoas que estão abaixo de mim.
Por isso, faço um convite para que cada um perceba, em si mesmo, o que é que encontra encaixe nessa lógica de poder. É preciso reconhecer quais mecanismos internos nos prendem em determinadas situações que nos causam sofrimento, em que nos sentimos obrigados a ficar. A percepção das nossas vontades, limites, vulnerabilidades e potências é a forma que temos de nos proteger em situações abusivas. Portanto, a pergunta que sugiro manter em mente ao longo desta leitura é: o que, em mim, se sente tão atingido e vinculado a essa estrutura de poder, que não me permite enxergar alternativas mais saudáveis?
Finalmente, arrisco-me a destacar alguns padrões que se repetem em escolas e companhias de dança, e que encontram eco em relatos que tenho ouvido ao longo dos últimos anos, de maneira dispersa. Parto também da minha experiência pessoal como estudante e bailarina.
Talvez o ponto de partida mais óbvio seja a necessidade de adequação a um padrão corporal inatingível. Estamos falando de limites de peso arbitrariamente definidos e a busca por um corpo magro; barreiras de acesso impostas às pessoas de pele negra em forma de racismo velado ou explícito; a não contratação de pessoas trans em companhias tradicionais… ou mesmo um simples formato de pernas, pés, quadris.
Já percebeu que tem sempre algo apontado como errado ou faltante nos nossos corpos? Nós nos sentimos impelidos a nos contorcer (literalmente) para caber nesses padrões irreais, a ponto de gerar muita frustração, lesão e falta de confiança no nosso trabalho.
Então, a romantização do sofrimento se revela como uma forma de lidarmos com essas frustrações. É a ideia de que a vida de bailarina é sofrida mesmo. Se você ama a dança, você precisa dar provas desse amor incondicional: topa ensaiar em qualquer horário, posta fotos dos pés ensanguentados (como bem ressaltou a Marcela Benvegnu no seu Instagram) e aceita humilhações como parte natural do trabalho. Enfim, você lamenta como a vida de artista é difícil, mas acredita que, com esforço, dedicação e resiliência, você vai chegar lá (onde quer que seja “lá”, na verdade você não sabe muito bem).
Não é lindo se matar de ensaiar até gerar uma lesão séria. Não é lindo aceitar horários de ensaio impraticáveis. Quem, afinal, se beneficia dessa lógica? Limites precisam ser colocados, e o fato de um dançarino não aceitar algumas condições a ele impostas não significa que ele ame menos a dança, ou ainda, que não seja um profissional dedicado.
Rapidamente, o respeito em sala de ensaio vira medo, e as ordens são recebidas de cabeça baixa – afinal, reclamar pode ser pior ainda. É frequente imaginamos cenários terríveis que podem ocorrer ao proferir um “não”. Dizemos para nós mesmos que ainda dá para aguentar mais um pouquinho, ou ainda, “eu vou dar aula sem receber só mais essa vez”. É preciso coragem para negar algumas imposições, ainda mais quando se coloca em risco um emprego.
Mas sem limites bem delineados, a cobrança externa é internalizada e transformada em autocobrança. O próprio estudante ou profissional se cobra tanto a ponto de se boicotar. A bailarina se enxerga gorda demais, torta demais, fraca demais, feia demais. Suas melhoras e conquistas são entendidas como uma obrigação, e não como algo que mereça ser celebrado. Mesmo que as qualidades existam, elas não são suficientes.
Em consequência, o bailarino se vê incapaz de lidar com as suas dificuldades, que são entendidas como grandes fracassos dignos de (auto)punição ou vergonha, que devem ser escondidos a todo custo – imagine, mostrar os meus defeitos? Demonstrar que não sou tão boa quanto aparento? Jamais!
Essa autoimagem é reforçada por palavras e práticas que minam a capacidade de o dançarino perceber seu próprio valor, qualidades e potências, criando um espaço em que ele sente que precisa se blindar a todo momento. Assim, não consegue enfrentar seus “defeitos” com certa tranquilidade e aceitação. Sem a possibilidade de diálogo e a criação de um ambiente acolhedor, é cada vez mais difícil experimentar maneiras diferentes de dançar, de aprender, de interpretar, de ser artista.
É assim que, em um plano macro, formamos uma classe incapaz de valorizar o próprio tempo de trabalho, de estabelecer limites, de reivindicar, negociar, questionar. E nos esquecemos da dupla importância do dinheiro: a material e a simbólica. Além de pagar nossas contas e garantir condições dignas de vida enquanto artistas, o dinheiro é um símbolo muito poderoso: ele nos lembra de que alunos são clientes; bailarinos são funcionários contratados com base em uma legislação; professores são prestadores de serviço que são pagos para realizar aquela função específica, e assim por diante. Pois é, bailarino: você trabalha por dinheiro, não por amor. E que bom que seja assim.
Mesmo um aluno bolsista não deve favores ilimitadamente. Os termos dessa permuta estão claramente postos na mesa? Colocar sob a lógica de dívida a formação de um aluno, cujo intuito é capacitá-lo e emancipá-lo para que ele possa tomar suas próprias decisões, é uma faca de dois gumes. O professor, que se sente responsável pelas escolhas do aluno, se percebe injustiçado quando ele toma caminhos diferentes daquele que tinha sido previsto; assim como o aluno se sente preso à obrigação de corresponder às expectativas do professor, impedindo-se de tomar decisões autônomas. Qual a diferença, portanto, de gratidão e dívida?
É mais do que necessário descontruir alguns clichês que reproduzimos sem nos darmos conta e que afeta desde o bailarino estudante até o profissional. Nesse sentido, esbocei apenas alguns aspectos das relações sociais que se estabelecem entre dançarinos, seus pares e seus superiores. Para aprofundar o tema corpo e poder, deixo abaixo algumas indicações de leitura: