MURAL DA DANÇA

Dança, viagem e presença

Domingo, 19 de Dezembro de 2021 | por Henrique Rochelle |

Viajar é uma delícia. Viajar com dança é um desafio. Como contornar as dificuldades, pra criar ocasiões de estar junto?

Dança viaja muito mal. Pensa num livro: apesar do trabalho e delicadeza necessários pra guardar, isolar, proteger e transportar, em condições adequadas e tudo o mais, o espaço e a atenção necessários são significativamente menores do que pra uma pessoa. Agora multiplica pra um grupo. Quanto maior o grupo, mais complexa a viagem, maior o gasto, o volume, e a dedicação necessárias pra fazer viajar.

A complexidade das logísticas sempre me impressiona em eventos de dança. Quem tá de fora não tem ideia do nível de trabalho envolvido. Imagina organizar pra deslocar um grupo de 20 pessoas de suas casas até um aeroporto, até um outro estado, até um hotel, oferecer pra eles uma estrutura boa de acomodação, espaço de ensaio e aula, tempo de montagem de cenário e afinação de luz, marcação de palco, apresentação, devolver essas pessoas pra um hotel, depois mandar todo mundo de volta pro aeroporto, pra sua cidade de origem, e até as suas casas.

Agora considera que pessoas precisam de espaço, de comida e de descanso. Considera a particularidade do corpo em cena, que não pode só virar a noite num aeroporto e de repente chegar dançando no teatro. A conta vai se alongando e acaba sendo o motivo constante pras dificuldades de circulação que a dança enfrenta. Tudo isso custa muito dinheiro, e a gente sabe que os patrocínios tem mirrado.

Em muitas formas de arte, o que a gente transporta é o obra, o objeto, o suporte. Em dança, a gente transporta os artistas. E as condições desse transporte e dessa viagem sem dúvida influenciam as possibilidades do resultado final, da arte que encontramos em cena.

É o tamanho desse esforço que me deixa deslumbrado toda vez que eu viajo pra um evento. Independente da proporção e da quantidade de apresentações, o plano de reunir dança, e a oportunidade de imersão do público, são incríveis. Tem coisa que ocupa um teatro, tem coisa que ocupa uma rua, tem coisa que ocupa um hotel, tem coisa que ocupa uma cidade, e já teve coisa até ocupando um avião.

Eventos reúnem artistas e artes diversas, mas, ainda mais importante, reúnem plateias. São quinhentas, mil pessoas assistindo àquelas 20. Qual o tamanho do público de um evento de 10 apresentações? De 25? De 40? Se o fazer acontecer inclui um gasto notável, olha o outro lado da moeda e o retorno do investimento. Em quantas vezes o valor necessário pra fazer isso acontecer se multiplica em acesso e proximidade com a arte.

Quando a gente tem a chance de morar em uma cidade que acomoda grandes eventos, ou de chegar a uma dessas situações, a ideia na minha cabeça sempre insiste no valor da diversidade: quanta coisa a gente pode conhecer ali, que normalmente talvez não tivesse a chance. Da diversidade, a percepção do tamanho do mundo: quanta dança existe que eu ainda não acessei, e o que eu posso fazer pra estar mais perto?

Os tempos de afastamento nos forçaram a descobrir formas de substituir o insubstituível da presença. Não é igual, mas pode ser um tanto mais próximo. O desafio da retomada fica nas estratégias: como manter o incentivo e o valor da presença, ao mesmo tempo em que multiplicamos acessos e ampliamos possibilidades de contato? Adiante, novas formas de estar perto, na torcida por muitas oportunidades e convites pra estar junto.

 

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança

*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete a opinião do Portal MUD.


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Henrique Rochelle

Crítico de dança



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