A cultura do cancelamento é forte, mas arrisca só tapar o sol com a peneira. O que precisa ser cancelado na dança?
A cultura de cancelamento está por toda parte. A dança não escapa. Há pouco tempo, o diretor da Ópera de Paris comentou que algumas coreografias seriam canceladas do repertório do Balé: elas têm estruturas e representações racistas, eurocêntricas, e inadequadas para os dias de hoje.
Vários desses balés são importantes na companhia, esgotam ingressos, são queridos do público, deixam fila de espera dobrando o quarteirão. Mas são problemáticos, como muito do pensamento e do discurso dos momentos em que foram feitos.
Em 2018 começou um tanto de questionamento sobre os estereótipos asiáticos, especialmente no Quebra Nozes, e a prática de yellowface — bailarinos de diversas etnias se caracterizando caricaturalmente como se fossem asiáticos, para dançar certos papeis.
Outros tantos são os casos: a passagem do século XIX pro XX tinha uma obsessão com culturas distantes, e os retratos que faziam dessas culturas eram pintados de preconceito, clichês, e estereótipos.
Hoje temos outras formas de contato, outras formas de conhecimento, e algum avanço no debate dessas questões, cada vez mais fundamentais e incontornáveis. Cancelamento é a resposta?
Em 2017, depois do trágico incidente de má interpretação, má intenção e crueldade, quando injustamente acusaram Wagner Schwartz de pedofilia após uma apresentação de seu trabalho La Bête no MAM, o performer passou por linchamento virtual.
Criou-se todo um movimento de ataque, violentamente se posicionando contra algo que não estava lá. Os que se posicionavam, poderiam acreditar na justiça de suas intenções: ninguém se opõe a um movimento contra a pedofilia. Mas o erro das ações tem ecos perigosos. Cancelado, até a morte do performer chegou a ser falsamente noticiada (e comemorada por alguns).
A resposta da cultura de cancelamento é rígida — pra ambos os lados: um grupo cancela o balé, porque é problemático; outro grupo cancela quem aponta os problemas. Mas até que ponto cancelar não é só um jeito de tapar o sol com a peneira? Se a gente finge que a coisa não existe mais, é fácil fingir que o problema também não existe.
Cancelar um diretor machista não resolve um problema. Cancelar uma cena racista não resolve um problema. Cancelar um performer não resolve um problema. Chama a atenção, e às vezes isso é tudo que temos. Mas cancelamento e fake news têm andado de mãos dadas.
Qual a nossa possibilidade de ação? Discutir, se informar. O processo histórico para conseguirmos chegar a essas discussões foi longo, e elas não podem ser disfarçadas. É colocar o dedo na ferida, buscar aqueles que podem falar sobre esses problemas, e entender como fazer melhor. Sabendo que daqui a um século talvez sejamos antiquados, sabendo que daqui a um século talvez sejamos cancelados.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.
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